Diferentemente de editais semelhantes ocorridos em outras ocasiões, desta vez órgãos oficiais de investigação que seriam beneficiados diretamente pela ferramenta, como o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), não estão envolvidos nas tratativas.
O edital de licitação em questão é o de nº 03/21, do Ministério da Justiça, no valor de R$ 25,4 milhões, previsto para acontecer nesta quarta-feira (19). O objetivo é contratar o avançado (e polêmico) programa de espionagem Pegasus, desenvolvido pela empresa israelense NSO Group.
O Pegasus já foi usado para espionar celulares e computadores de jornalistas e críticos de governos ao redor do mundo. Em junho de 2017, por exemplo, o jornal The New York Times revelou que o software estava sendo usado pelo governo do México, ainda sob a gestão de Enrique Peña Nieto, para espionar ativistas contrários à sua gestão. Segundo informações do veículo norte-americano, o governo daquele país chegou a gastar cerca de US$ 80 milhões para o uso da ferramenta desde 2011.
“Abin paralela”
Segundo fontes ouvidas sob a condição de não terem seus nomes e cargos revelados, o político carioca tenta diminuir o poder dos militares na área de inteligência. Para tanto, articulou junto ao novo ministro da Justiça, Anderson Torres, para excluir o GSI da licitação. O órgão, que é responsável pela Abin, é chefiado pelo general Augusto Heleno e tem muitos militares em seu quadro.
De acordo com as mesmas fontes, o objetivo final de Carlos Bolsonaro é usar as estruturas do Ministério da Justiça e da PF (Polícia Federal) para expandir uma “Abin paralela”, na qual tenha grande influência.
Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública disse que o processo de licitação visa a “aquisição de ferramenta de busca e consulta de dados em fontes abertas para ser usado, pelo ministério e órgãos de segurança pública, nos trabalhos de enfrentamento ao crime organizado”. A pasta afirmou ainda que “a referida licitação não tem nenhuma relação com o sistema Pegasus”.
Pegasus
A reportagem teve acesso, com exclusividade, às propostas, ainda sob sigilo, de todos os concorrentes do pregão eletrônico. Fontes que integram o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) enfatizaram a participação da NSO Group, dona do Pegasus, no pregão por meio de um revendedor brasileiro, que fez uma proposta ao edital de R$ 60,9 milhões. O valor, porém, ainda poderá ser reajustado para se enquadrar à quantia estabelecida para a aquisição por 12 meses da nova ferramenta.
As propostas com valores muito superiores ao previsto pelo edital, como é o caso da empresa Synchronet Telecomunicações Ltda., que fez uma oferta de R$ 1,25 bilhão para o fornecimento do serviço, já foram descartadas de antemão.
Há o entendimento na ala militar de que o Pegasus possibilita a invasão de celulares e computadores sem indicar o responsável pelo acesso —a facilidade é tamanha que um dispositivo pode ser acessado sem precisar ser ativado pelo usuário, o que membros da inteligência chamam de “zero cliques”.
Outro ponto de discórdia entre os militares e Carlos Bolsonaro está no fato de que Anderson Torres não se opõe ao armazenamento de dados e informações por estrangeiros, em especial de empresas com sede na Alemanha ou em Israel.
Alegando questões de segurança nacional, equipes do GSI e da Abin, porém, não abrem mão de que informações oriundas de investigações, enriquecidas com os dados de cidadãos e de empresas nacionais, devam ser exclusivamente armazenadas e processadas no Brasil.
O poder de Torres
A aquisição da nova “solução de inteligência em fontes abertas, mídias sociais, Deep e Dark Web”, como é descrita no edital, também distorce o equilíbrio entre os órgãos de inteligência do governo, dando muito poder ao ministro Anderson Torres.
O software funciona por meio de licenças, que são como direitos individuais de acesso. Das 249 licenças ao novo programa previstas no contrato, Torres terá sob sua influência 155, que também deverão ser compartilhadas com Carlos Bolsonaro, segundo as fontes ouvidas pela reportagem.
Desse total, 100 ficarão com a PF e 40 irão para a Secretaria da Segurança Pública de Brasília (órgão que já foi chefiado pelo atual ministro). As outras 15 permissões serão destinadas ao Corpo Bombeiros e às polícias Civil e Militar do Distrito Federal.
As autorizações restantes serão disponibilizadas ao BC (Banco Central), ao MPF (Ministério Público Federal) e a órgãos de 13 Estados.
Sobre o número de acessos adquiridos pelos órgãos, o Ministério da Justiça disse que este não sofre ingerência do ministro Anderson Torres. “Vale frisar que quem custeia e contrata essas licenças são os próprios órgãos participantes da ata”, disse a pasta.
Interesse antigo
Não é de hoje que o governo pretende adquirir uma ferramenta espiã de fácil acesso. Em junho de 2019, em uma reunião sigilosa no Quartel-General do Exército, uma outra ferramenta, concorrente do Pegasus, foi apresentada a sete generais. Segundo fontes internas, dentre os militares estava o então ministro da Secretaria de Governo, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz.
No encontro, o alto comando tentava negociar uma ferramenta em que a invasão, segundo os vendedores do programa, fosse indetectável, e em que os dados coletados não fossem enviados ao exterior.
O encontro confidencial, porém, foi descoberto por Carlos Bolsonaro. Sete dias depois, o general Santos Cruz foi exonerado, sendo o terceiro ministro a deixar a atual gestão.
‘Participação não republicana’
Segundo o advogado Renato Ribeiro de Almeida, doutor em direito pela USP (Universidade de São Paulo), por não compor o quadro funcional da administração federal, a constante atuação de Carlos Bolsonaro na gestão do pai pode ser classificada como “inadequada” e até mesmo configurar um crime de responsabilidade.
“Não é republicano pelo simples fato de ser filho do presidente, estar em reuniões estratégicas do governo. E a questão é ainda mais séria, quando se avalia a possibilidade de entrega de dados de brasileiros a empresas internacionais”, enfatizou.
O especialista, que é membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, o ato do parlamentar municipal pode ser entendido como “um ato de lobby”, ainda não regulamentado no Brasil. “Nada mais é que uma interferência de um particular em atos do governo”, disse.