Sobre Ernesto Geisel: os méritos do general e algumas comparações com Lula

Ernesto Geisel em convenção da Arena em 1973. Créditos: Arquivo Ernesto Geisel / FGV/CPDOC

Na minha longa experiência como colunista, aprendi que não é recomendável publicar artigos em sequência. Entre um e outro artigo, acontecem mil coisas, vem uma torrente de outros artigos e notícias, e o leitor do texto inicial já nem lembra dele ou perdeu o interesse pelo tema. Mesmo assim, é exatamente o que vou fazer hoje  – retomar um aspecto do artigo que publiquei recentemente em homenagem aos 70 anos do suicídio de Vargas (“70 anos da morte de Getúlio Vargas”, agosto de 2024 – acesse no link). A razão é  que nesse artigo um ponto causou surpresa, quando não repulsa: a referência ao general Ernesto Geisel como um dos quatro grandes Presidentes da República da nossa história, junto com Getúlio, Lula e Juscelino Kubitschek.

Prometi explicar um pouco melhor a inclusão de Geisel nessa pequena lista, pois sabia que ela seria controvertida. Estou aqui cumprindo a promessa. 

O tema é vasto e o tempo do leitor, curto. Vou abordar apenas três aspectos do seu governo  – economia, política interna e relações internacionais. Os méritos da sua presidência, que foi de março de 1974 a março de 1979, são muitos e me parecem inegáveis, mas não deixarei de apontar erros e pontos fracos. Vou mesclar leituras e estudos com lembranças pessoais dessa época. Farei comparações com o governo Lula e outros governos posteriores a Geisel. Mas será uma apertada síntese, como dizem os advogados. Em todo caso, “alerta de textão”, como diz a gurizada.

Geisel foi um presidente desenvolvimentista e nacionalista, mais do que qualquer outro da ditadura militar. E mais do que qualquer outro dos presidentes da República que vieram depois – com as exceções de Lula e Dilma. Geisel retomou, assim, a tradição de Getúlio e JK – não só em economia, mas também nas relações internacionais do Brasil. 

Sobre política econômica e muitos  outros aspectos da atuação de Geisel recomendo vivamente ao leitor ou leitora que consulte o livro “Ernesto Geisel”, editado pelo Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas – um trabalho primoroso, baseado em longo depoimento do ex-presidente, tomado em 1993 e 1994, e cuidadosamente revisto por ele. Nessa revisão, Geisel acrescentou, em especial, longo trecho em defesa da intervenção do Estado na economia.

No seu período de governo, destaca-se o II Plano Nacional de Desenvolvimento, baseado na ampliação e diversificação do parque industrial brasileiro, especialmente o setor de bens de capital. O meu primeiro  emprego, menciono en passant, foi como estagiário do II PND e dou meu modesto testemunho do dinamismo do Ministério do Planejamento na época, sob comando de João Paulo dos Reis Velloso.

Era um Brasil que confiava em si mesmo e no seu potencial de desenvolvimento. Havia muitos problemas não resolvidos e que sequer foram realmente enfrentados – em especial a péssima distribuição de renda e riqueza –,  mas a economia crescia rapidamente e gerava empregos. O PIB cresceu 7% ano em média, resultado não igualado nos governos posteriores. O II  PND se baseava no chamado tripé – o Estado, o setor privado nacional e o setor privado estrangeiro. Uma economia mista, portanto, com forte presença das empresas estatais, mas aberta ao capital estrangeiro. Incluía-se, também, um apoio à indústria privada nacional, por meio do BNDE e outros instrumentos. O meu segundo emprego, aliás, foi como estagiário do BNDE e pude ver como o banco com entusiasmo no cumprimento da missão de apoiar o desenvolvimento de setores estratégicos da economia nacional privada. E ressalto: o apoio era a empresas privadas nacionais. Os engenheiros, economistas e advogados sob cuja orientação eu trabalhava resistiam ferozmente a qualquer tentativa de  empresas estrangeiras se travestirem  de nacionais para obter financiamento de longo prazo a taxas favorecidas junto ao BNDE. O argumento, naquele tempo, era o de que filiais e subsidiárias de empresas estrangeiras podiam recorrer ao capital de suas matrizes e tinham acesso mais fácil ao mercado internacional de crédito. Não deviam e nem precisavam, portanto, buscar apoio nos bancos públicos brasileiros.

A essa altura do texto, já se percebe por que economistas nacional-desenvolvimentistas têm razões de sobra para apreciar o que foi feito no período Geisel. Basta comparar com o que aconteceu em governos posteriores em matéria de compromisso com o desenvolvimento, com o último da ditadura  militar, o governo Figueiredo, e com o governo Sarney (exceção feita ao breve interregno do ministro da Fazenda Dilson Funaro, do qual também participei, já na condição de economista). Já nem peço  a comparação com os governos antinacionais de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso. No Lula II e Dilma I, foi retomada a tradição nacional-desenvolvimentista. E Lula III faz agora nova tentativa, depois do fracasso dos governos imediatamente anteriores. 

A gestação da crise da dívida externa

A bem da verdade, entretanto, é preciso ressaltar que as enormes dificuldades dos governos Figueiredo e Sarney resultaram, em parte, de erros estratégicos cometidos no governo Geisel. Diante do primeiro choque do petróleo em 1973, período em que o Brasil era muito dependente das importações desse produto, Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda, o já mencionado João Paulo dos Reis Velloso, e Paulo Lira, presidente do Banco Central, resolveram permitir que a perda de termos de troca se refletisse em desequilíbrios perigosos no balanço de pagamentos em conta corrente e um acentuado aumento da dívida externa líquida do país. Os três eram economistas de grande valor, o que não impediu que se dessem conta desses  problemas a tempo. 

Deu-se então  a famosa “reciclagem dos petrodólares”, realizada por bancos comerciais privados americanos, europeus e japoneses. Isso levaria à crise da dívida externa da década de 1980, agravada pela forma como Delfim Neto, no governo Figueiredo, respondeu ao segundo choque do petróleo em 1979 e ao choque de juros promovido pela Reserva Federal dos Estados Unidos a partir de 1980.

Uma questão essencial: o governo Geisel não percebeu a importância de acumular um volume mais expressivo de reservas internacionais como forma de autoproteção. Quando veio o segundo choque do petróleo e a alta das taxas de juro internacionais, houve inesperado aumento das necessidade de financiamento externo da economia brasileira. A liquidez internacional, em especial a  oferta de crédito bancário privado, que muitos supunham infinitamente elástica, secou abruptamente. E o Brasil teve que recorrer ao FMI, perdendo soberania e autonomia de decisão.

Ressalvo que não era tão fácil perceber plenamente esses riscos na época. Ainda me recordo de assistir no Rio de Janeiro, por volta de 1979,  uma interessante palestra do economista John Williamson, que ficou célebre como pai do “Consenso de Washington”. Durante a apresentação e no trabalho escrito que serviu de base a ela, Williamson sustentou que as reservas internacionais do Brasil (cerca de US$ 13 bilhões) estavam altas demais… Na verdade, a  equipe econômica do governo Geisel se deixou seduzir por esse tipo de balela. Quase imediatamente depois das lições ministradas por Williamson, as reservas brasileiras se mostraram dramaticamente insuficientes. O resultado foi o colapso da economia –   “a construção interrompida” a que faria referência Celso Furtado.

Meu encontro com Geisel e algumas comparações com Lula

Mesmo assim, os méritos do governo Geisel na área econômica me parecem inegáveis. O presidente tinha certa sabedoria na condução da política econômica. Tive o privilégio de conhecê-lo por volta de 1979/80. Geisel, já ex-presidente, veio almoçar na casa do meu pai onde ficamos os três conversando. Eu, com 24 ou 25 anos, praticamente não dei um pio, limitando-me a fazer algumas perguntas. Da conversa ficaram duas coisas importantes na minha memória.

Primeira: referindo-se à forma de lidar com o Ministro da Fazenda, Geisel frisou que, em todo governo, todos os ministros querem gastar, e só um, o da Fazenda, quer economizar. E cabe ao Presidente, disse ele, prestigiar esse um – sob pena de colocar o governo a perder. Assim faz o presidente Lula, que sempre apoia o ministro Haddad.

Segundo aspecto da conversa com Geisel, esse não presente no governo atual: é imprescindível, destacou ele,  que o Presidente tenha dentro do governo acesso a mais de uma opinião em matéria econômica. Lamentou que o seu sucessor, o general Figueiredo, tenha ficado na mão de um só superministro da economia, Delfim Neto. Geisel lembrou, por contraste, que ele contava com três vozes influentes e independentes entre si: os acima mencionados Simonsen na Fazenda, Velloso no Planejamento, além de Severo Gomes, o Ministro da Indústria e Comércio. Quando havia uma questão econômica importante, ele convocava esses ministros, abria um debate, ouvia os argumentos, as concordâncias e discordâncias – e então tomava ele mesmo as decisões.
Nesse ponto, Lula segue uma abordagem diferente. Só tem Haddad como ministro influente e de confiança para questões econômicas. Talvez ele devesse criar, como sugeriu o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, uma assessoria especial da Presidência, no Palácio do Planalto, semelhante ao Council of Economic Advisors da Presidência dos Estados Unidos. Ela poderia funcionar nos moldes da assessoria especial para assuntos internacionais, comandada pelo ex-ministro Celso Amorim, que conta  com o auxílio de uma equipe de diplomatas e outros assessores.

A dimensão política interna

Volto a Geisel. Ele foi um ditador, um dos cinco presidente do regime estabelecido pelo golpe militar de 1964. E, no entanto, é preciso notar, também, que foi ele o responsável pela “distensão lenta, segura e gradual”, nas suas próprias palavras. Essa “distensão” levaria ao fim da ditadura. Geisel enfrentou, inclusive, resistência feroz à abertura política por parte da “linha dura” das Forças Armadas, como recapitulei no artigo anterior sobre Getúlio Vargas.

Repare, leitor ou leitora, num ponto que me parece crucial, ainda que controvertido: a “distensão” veio, no meu modo de ver, essencialmente de cima para baixo, por iniciativa do presidente Geisel, que teve a percepção de que a ditadura militar não deveria e nem poderia se eternizar. Não veio de baixo para cima, por pressão de setores da sociedade civil. Eu mesmo, como aluno de economia e liderança estudantil, participei dessa pressão de baixo para cima cuja ponta-de-lança era a agitação anti-ditadura em algumas universidades. 

Em 1977, esse movimento estudantil, dormente desde 1968, ressurgiu com certa força, sobretudo na USP e na PUC do Rio de Janeiro, onde eu estudava e integrava o grupo de líderes políticos na faculdade. Lembro bem da espionagem espantosamente detalhada do SNI nas nossas reuniões de diretório, da convocação para depoimento de alguns de nós no DOI-CODI (um órgão de repressão), dos helicópteros militares sobrevoando ameaçadoramente o campus da PUC, enquanto uma grande massa de estudantes bradava em coro, em resposta a um de nós que gritava num megafone: “Jornalista Vladimir Herzog” – “Presente!”; “Operário Manoel Fiel Filho” – “Presente!” – em referência que até hoje me emociona a dois “subversivos”, como diziam os militares, que haviam sido assassinados nas dependências do Segundo Exército. Por conta desses assassinatos e outros problemas, aliás, Geisel demitiu em 1976 o general Ednardo D’Ávila, o comandante do Segundo Exército, como lembrei no artigo anterior.  

Mas não me iludo. A pressão dos estudantes e de outros setores não teria sido nem de perto suficiente para levar à democratização. O mérito principal é de Geisel. E não me parece justo, acrescento, atribuir a ele a responsabilidade integral por todas as violências políticas que ocorreram durante o seu governo. Isso não equivaleria, pergunto, atribuir a Lula a responsabilidade por todos os escândalos de corrupção que ocorreram na Petrobrás e outras áreas durante os seus governos?
Também na área política a sabedoria de Geisel parece evidente. No depoimento ao CPDOC, sem que tivesse sido perguntado a respeito, referiu-se a um futuro Presidente da República nos seguintes termos: “Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos com Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. E destacou que Bolsonaro, na época deputado federal, era um dos insensatos que queria voltar à ditadura militar.

Nacionalismo e relações internacionais

Na área internacional o governo Geisel também se destacou positivamente, sob a égide do que ele chamou de “pragmatismo responsável”. Com Geisel voltou a política externa independente, uma retomada da tradição de Getúlio e uma antecipação da política que Lula faria de 2003 em diante. 

Alguns exemplos, listados rapidamente para não alongar mais um artigo já extenso demais. 

Embora anticomunista, Geisel reconheceu a China de Mao Tse Tung e abandonou as relações com Taiwan em 1974 – isso anos antes o que os Estados Unidos o fizessem – um “primeiro sinal de que o Brasil teria uma política externa independente”, como notou Celso Amorim em entrevista recente. Geisel reconheceu, além disso, a independência e estabeleceu relações com os regimes marxistas de Angola e Moçambique em 1975. 

E abandonou um acordo militar com os Estados Unidos em 1977, porque o governo Carter passara a condicionar financiamentos à supervisão dos direitos humanos no Brasil. Outro ponto crucial: Geisel não aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, intensamente patrocinado pelos Estados Unidos e pela União Soviética. A adesão só ocorreria durante o governo entreguista de Fernando Henrique Cardoso. 

Ainda mais importante, também na área nuclear: o acordo Brasil/Alemanha Ocidental, realizado no governo Geisel, que resultou no programa nuclear brasileiro e na criação de uma empresa estatal para executá-lo, a Nuclebrás. Meu pai foi o principal negociador desse acordo e o primeiro presidente da Nuclebrás. Esse programa nuclear sofreu, como seria de prever,  forte oposição dos Estados Unidos e dos seus aliados brasileiros, de um lado, e da União Soviética e seus aliados brasileiros, de outro. O governo Geisel  resistiu a essas pressões e tocou o programa nuclear para frente. Ele só viria a ser interrompido no governo Figueiredo como consequência da perda de soberania associada à crise da dívida externa.

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A questão é polêmica, reconheço, mas concluo com uma pergunta: todas essas considerações econômicas, de política interna e  de relações internacionais não seriam suficientes para incluir Geisel no rol dos maiores Presidentes da República da nossa história? 

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
** Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital. 

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