Por que muitos comemoraram a morte de Shinzo Abe?

Apesar das condolências emitidas por porta-vozes de todo o mundo, muitos populares nas redes sociais comemoraram o assassinato do ex-primeiro-ministro japonês. Mas o que levaria alguém a comemorar tal ato hediondo?

O assassinato do ex-premier japonês, Shinzo Abe, nesta última sexta (08) foi recebida com tristeza e surpresa de seus pares ocidentais. Descrito como “líder brilhante” pelo presidente Jair Bolsonaro, Abe “trabalhou para trazer equilíbrio ao mundo”, segundo o presidente francês Emmanuel Macron.

A comoção se estende desde o secretário de Estados dos EUA Antony Blinken, que o chamou de “líder com grande visão”, até o presidente da China, Xi Jinping, que enviou uma carta à família de Abe. Todos expressaram suas condolências. Mas nas redes sociais, o clima é diferente.

“Será que a arma está bem?”, perguntava um usuário da rede social Weibo, enquanto outro usuário descrevia o assassino como “herói anti japonês”. Com ironia, a notícia do assassinato de Abe nesta última sexta (08) foi recebida de maneira eufórica por netizens coreanos e chineses. Ainda que de forma menos carnavalesca, a morte precoce de Abe remonta a comemoração do falecimento de Margaret Thatcher, em abril de 2013.

Mas afinal, o que levaria alguém a comemorar a morte hedionda de uma liderança tão admirada mundialmente?

Membro de uma oligarquia política, Shinzo Abe é neto do notório criminoso de guerra “classe-A” Nobusuke Kishi, apelidado de “Monstro da Manchúria”. Tal qual outros membros da burocracia imperial japonesa, Nobusuke foi liberado das acusações após a ocupação do Japão pelos EUA, ao ponto de ocupar o cargo de primeiro-ministro ao final da década de 50.

De certo, não faz sentido culpar Shinzo Abe pelos crimes de seu avô. Talvez o que incitaria o sentimento de revanche contra ex-premier por parte de povos outrora violentados pelo Japão seja o fato de Abe negar essa violência.

Acusado de Crimes de Guerra, Nobusuke Kishi foi detido na prisão de Sugamo pela ocupação dos EUA antes de ser liberado e se tornar primeiro-ministro em 1957.

Um revisionista dos crimes de guerra do Japão

O colonialismo ultranacionalista e racista do Terceiro Reich teve como par asiático o Império do Japão, que promoveu crimes contra a humanidade de mesma ou pior proporções. Mas, diferente do enorme esforço nacional de conscientização sobre os horrores do holocausto e do nazismo, o Japão ainda não fez as pazes com sua história. O “führer” do Japão não se suicidou: Hirohito continuou imperador até 1989, quando sofreu uma morte lenta em função de um câncer. Seu filho, Akihito, e mais tarde o neto Naruhito, continuaram no topo da hierarquia.

Mesmo nos dias atuais, existem museus e templos exaltando os feitos dos heróis do império, como é o caso do Santuário Yasukuni. Este último é frequentemente visitado por figuras de Estado, como Shinzo Abe e seu irmão Nobuo Kishi, ministro de defesa do Japão. É como se fosse corriqueiro ver figuras do Estado alemão, como Olaf Scholz ou Angela Merkel, perambulando e prestado homenagens em túmulos de funcionários nazistas.

Ex-primeiro-ministro Shinzo Abe em visita ao santuário Yasukuni, Tokyo. (foto: KYODO)

Em abril de 2022, o atual primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, enviou oferendas ao santuário que abriga os restos mortais de centenas de criminosos de guerra classe-A deificados. Essa postura, bem como as visitas e a manutenção de homenagens à criminosos de guerra são alvo frequentes de críticas dos governos do leste asiático.

As polêmicas não param por aí. Negacionista dos crimes do Império do Japão, o governo de Shinzo Abe foi acusado de facilitar a compra de um terreno pelo diretor de um Jardim de Infância em Osaka por 10% de seu valor. A esposa de Shinzo Abe, Akie Abe, teria recebido o posto de diretora de honra da instituição privada.

Para olhares menos atentos, isso seria apenas mais um esquema de fraude entre tantos que passam despercebidas. A questão está no caráter do Jardim de Infância Tsukamoto, uma instituição privada ultranacionalista que transmite valores imperiais e ideologia fascista a crianças. A compra fraudulenta do terreno seria visando a construção de uma escola de ensino básico.

No Jardim de Infância Tsukamoto, em Osaka, crianças são expostas ao modelo educacional imperial de 1890, abolido após a Segunda Grande Guerra.

As reformas educacionais introduzidas por Abe reduziram a atenção dada à massacres como o Estupro de Nanjing, onde milhares de civis chineses foram brutalmente assassinados, mencionado unicamente como “incidente de Nanjing”. Também são ocultados ou secundarizados as experimentações humanas e torturas da Unidade 731, bem como as “mulheres de conforto”, mulheres coreanas, chinesas, filipinas e de outras nacionalidades que foram escravizadas e forçadas a servir sexualmente as tropas japonesas.

Essa disputa de narrativa histórica na mente de crianças e jovens, a qual chamamos de revisionismo, é apenas uma das atribuições da seita restauracionista do império japonês, a Nippon Kaigi, da qual Shinzo Abe fazia parte. Não só Abe, mas outras proeminentes figuras do Partido Liberal Democrata, como seu irmão e ministro da defesa Nobuo Kishi, e o atual primeiro-ministro, Fumio Kishida. Na lista de filiados também estão outros dois ex-primeiro-ministros do Japão, Taro Aso e Yoshihide Suga, além do ex-Chefe de Justiça da Suprema Corte, Toru Miyoshi.

Em 2014, a seita respondia por quinze dos 18 membros do gabinete de Shinzo Abe. Em 2017, a seita de fanáticos Nippon Kaigi controlava 60% das 480 cadeiras do parlamento japonês e contava com 40 mil filiados.

Apesar da popularidade entre oligarcas japoneses, a seita Nippon Kaigi vê dificuldades em prosseguir com seu objetivo de restaurar plenos poderes à casa imperial. Por anos, Abe tentou sem sucesso revogar o caráter pacifista da constituição japonesa, contido no artigo 9, que renuncia a guerra como direito soberano. Ainda que o Japão esteja entre os dez países que mais gastam com armas de guerra, as capacidades burocráticas impedem uma série de pretensões imperiais.

Para contornar a preferência do povo japonês pela paz, esses burocratas que ocupam os principais cargos de mando do Japão tem feito aproximações singelas, ora mais ou menos discretas.

Em 2015, o Japão de Shinzo Abe aprovou uma lei que autoriza envio de militares ao exterior. Em 2020, na função de primeiro-ministro interino, Yoshihide Suga elevou a parceria com a Austrália permitindo, pela primeira vez desde 1960, a entrada de militares outra que dos americanos em seu território. No ano passado, Fumio Kishida anunciou um incremento recorde de 700 bilhões de ienes ao seu gasto militar.

No âmbito das alianças, o Japão se tornou uma potência militar próxima ao QUAD, AUKUS e OTAN. No rol das condolências pelo assassinato de Abe, o secretário geral da OTAN Jens Stoltenberg, chamou o ex-premier de “defensor da democracia” e “parceiro da OTAN”.

Prostesto contra Shinzo Abe em Tokyo, 2015.

Não raro foram as manifestações contra as pretensões militares de Abe, dentro e fora do Japão. Em 2015, um massivo protesto tomou as ruas de Tokyo, rejeitando a lei que permitiu o Japão enviar militares para o exterior. Apesar das motivações que levaram ao assassinato de Abe não estarem claras, muito se especula nas redes sobre o fato do assassino ser um militar da marinha japonesa.

Muito se fala sobre o avanço da “extrema-direita mundial” com a chegada de Trump ao governo dos EUA em 2017, mas no Japão isso não é uma novidade. A verdade é que os governos ocidentais fazem vista grossa ao ultranacionalismo imperial do Japão, o deixando em standby para acionar mais essa peça quando chegar a hora certa.

Inofensivo e bem-humorado, essa é a imagem passada por Shinzo Abe ao se fantasiar de Super Mario no encerramento dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.

Contrariando os críticos mais emocionadas pela morte de Shinzo Abe, outros opositores mais sensatos atentam para o uso político do assassinato que ocorre às vésperas da eleição japonesa, na qual está em disputa a revogação do pacifismo constitucional, leis xenofóbicas e o orçamento para a guerra. Rob Kajiwara, ativista do povo uchinanchu, disse estar preocupado que o assassinato dê mais força aos neonacionalistas contra quem se opõe à ideologia racista.

Estou preocupado que o assassinato de Shinzo Abe encoraje os neonacionalistas de extrema direita do Japão e aumente a hostilidade contra qualquer um que se oponha à sua ideologia racista, incluindo okinawanos, coreanos, chineses, etc.” Rob Kajiwara é ativista e presidente da Coalizão Paz para Okinawa, que luta pela defesa do povo uchinanchu e contra a ocupação militar americana no arquipélago

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