O Sul Global, tendo ganho a sua voz, defende uma ordem eficaz baseada em regras

(Foto: JIN DING/CHINA DIÁRIO)

Entre as questões que atualmente polarizam a atenção da comunidade internacional estão os conflitos na Ucrânia e na Palestina. O primeiro completará dois anos no final deste mês. A invasão da Faixa de Gaza pelas Forças de Defesa de Israel, em resposta aos ataques liderados pelo Hamas que resultaram na morte de 1.200 israelenses e na captura de mais de 200 reféns, já está em seu quinto mês. Os custos humanos e materiais de ambos os conflitos são incalculáveis.

Ambos os conflitos são motivo de preocupação para muitos governos e foram debatidos no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral das Nações Unidas. Um padrão bem definido foi estabelecido em sucessivas votações para resoluções que tratam dessas crises. Os países do G7 e seus aliados estão de um lado; os países do Sul Global estão do outro. Em março de 2022, por exemplo, embora muitos desses países tenham denunciado a Rússia pela crise na Ucrânia, poucos aderiram às sanções econômicas impostas à Rússia pelos Estados Unidos e pela União Europeia.

A discussão mais recente diz respeito à apresentação pelo governo da República da África do Sul à Corte Internacional de Justiça, denunciando o governo israelense por cometer genocídio contra a população palestina na Faixa de Gaza. Esta ação teve amplo apoio de países do Sul Global, incluindo vários países da América Latina.

É importante notar que, em ambos os eventos, o posicionamento dos países em desenvolvimento não foi marcado por preferências ideológicas ou culturais, mas por insatisfação com a configuração atual da ordem internacional na qual essas nações se encontram excluídas das decisões mais críticas. Além disso, o ressentimento em relação ao colonialismo merece ser mencionado, pois persiste até hoje. Apesar de formalmente independentes, as populações de Burkina Faso, Mali e Nigeria, por exemplo, ainda resistem à influência política, econômica e militar atual da França em suas nações. Esse ressentimento ocorre na maioria dos países do Sul Global que foram vítimas do imperialismo e do colonialismo.

Assim como o Movimento dos Não Alinhados antes, o movimento do Sul Global questiona a chamada ordem internacional baseada em regras liderada pelos EUA por ser bastante seletiva em sua aplicação. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os países ocidentais sempre escolheram as regras que beneficiam a si mesmos e, simultaneamente, impuseram regras a terceiros que eles próprios não seguiram. O livre comércio é um deles, assim como o respeito pelos princípios de integridade e soberania das nações, que são aspectos essenciais das relações internacionais. Teoricamente, isso deveria se aplicar à Ucrânia, Síria, Iraque, Líbia, Iêmen ou Sudão. No entanto, os mesmos poderes que questionam a independência da região de Donbas, ou mesmo a criação de um estado nacional para os curdos ou a independência da Escócia, trabalham juntos para desmembrar outros países.

Outra seletividade diz respeito à defesa dos “direitos humanos”. Esse tema constrange países que não se submetem às potências hegemônicas. Muitas guerras, híbridas ou quentes, foram iniciadas sob esse pretexto. A Venezuela ainda enfrenta os duros impactos das sanções impostas pelos EUA e seus aliados, assim como o governo cubano, que enfrenta um bloqueio econômico há 61 anos.

Ainda assim, a crise humanitária na Ucrânia é real, com a destruição de infraestrutura e a emigração de centenas de milhares de famílias que fugiram do conflito, assim como os problemas humanitários que envolvem haitianos, birmaneses e outros. No entanto, apesar da semelhança das tragédias humanas, a maneira como cada crise é abordada difere substancialmente. “Pessoas de cor” do Sul Global são tratadas como cidadãos de segunda classe e submetidas a vários tipos de humilhação pelos governos ocidentais. A invisibilidade do sofrimento dos imigrantes na fronteira norte do México ou das pessoas tentando cruzar o Mar Mediterrâneo em direção à Europa é um exemplo disso.

Neste aspecto, é importante retornar ao tema da ação tomada pelo governo de Pretória contra as atrocidades cometidas na Faixa de Gaza. Até o momento da redação deste texto, as mortes em Gaza alcançaram mais de 27.000 pessoas, incluindo civis e combatentes. Para fins de comparação, entre 24 de fevereiro de 2022, que marcou o início do conflito, e 24 de setembro de 2023, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos registrou 9.701 mortes na Ucrânia. Vale lembrar que a população de Gaza é quase 20 vezes menor que a da Ucrânia, o que revela a escala da tragédia.

Em conclusão, ao analisar o recente posicionamento dos países do Sul Global em fóruns internacionais em relação aos conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza, em contraste com o G7, devemos considerar dois aspectos. Primeiro, as feridas históricas do colonialismo ainda não cicatrizaram, pois os efeitos nocivos da dominação, exploração e racismo ainda afetam as nações subjugadas. Segundo, reflete o maior protagonismo das nações em desenvolvimento, que, libertadas do jugo colonial, conseguiram recuperar o controle de seus destinos e acumular força econômica e política para garantir seus direitos.

Este novo protagonismo do Sul Global deve ser refletido na governança global para construir uma nova ordem internacional que seja efetivamente baseada em regras que respeitem a democracia entre as nações e que sejam aplicadas sem a atual seletividade. Neste aspecto, a recente expansão do grupo BRICS é encorajadora.

* O autor é professor de economia política internacional na Universidade Estadual Paulista. O autor contribuiu com este artigo para o China Watch, um think tank desenvolvido pelo China Daily.

** Texto traduzido da China Daily.

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