Acusando a suposta “militarização chinesa crescente”, políticos japoneses de alto escalão — ligados à organização restauracionista do imperialismo japonês, Nippon Kaigi — prometem um adicional recorde ao orçamento militar, 50% a mais que o registrado na última alta em 2018.
Segundo a Reuters, o adicional superior a 700 bilhões de ienes (US$ 6,12 bi.) será incluído ao pacote de estímulo à economia anunciado pelo primeiro-ministro, Fumio Kishida. Somado ao gasto militar do Japão que corresponde a 1% do PIB, essa alocação adicional fará o orçamento ultrapassar os 6 trilhões de ienes, uma vez que o inicial para o ano fiscal (que se encerra em 2022) era de 5,34 trilhões de ienes, o que corresponde a US$ 52,7 bi.
Com o adicional, o Japão bate no mesmo valor que o registrado no ano de 2020 pelo orçamento militar francês. França, Alemanha e Japão “disputam” a oitava posição no ranking dos maiores gastos militares do mundo.
O que é o Nippon Kaigi?
Apesar de oscilar entre a 8ª e 9ª posição no ranking, o Japão não possui exército regular, mas Forças de Autodefesa. Isso se deve aos acordos do pós-Segunda Guerra, quando a campanha colonial do Japão foi interrompida. Na redação da nova constituição, aprovada em 1947, o Japão renunciava “para sempre o uso da guerra como direito soberano da nação”.
A campanha expansionista do Japão, que durou de meados do século XIX até 1945, ainda hoje é motivo de constantes polêmicas e revisionismos de diversos tipos. As práticas com requintes de crueldade, de fazer inveja aos nazistas — tais como o extermínio em massa, disseminação de doenças contra cidades chinesas, escravização sexual de mulheres coreanas (“Mulheres de Conforto”) e as torturas em meio a experimentações humanas grotescas pela Unidade 731 — são ora ocultadas, ora secundarizadas nos livros de história.
Muito disso se deve à intervenção da seita Nippon Kaigi, uma organização ultranacionalista e ultraconservadora que trabalha para restaurar as capacidades militares de outrora e devolver plenos poderes à casa imperial.
Estabelecida em 1997, atualmente a seita conta com cerca de 40 mil filiados. Apesar do baixo número se comparado com total da polulação japonesa (125,8 milhões), o Nippon Kaigi controla cerca de 60% das 480 cadeiras do Parlamento japonês, sendo seus membros majoritariamente ligados ao LPD (da sigla em inglês para Partido Liberal Democrático).
Dentre os membros da seita, estão figuras proeminentes no alto escalão da política japonesa, como os últimos três primeiros-ministros Shinzo Abe, Taro Aso e Yoshihide Suga, bem como o atual primeiro-ministro Fumio Kishida. Abe é primo de Nobuo Kishi, atual ministro da defesa do Japão e também membro do Nippon Kaigi. Os dois são netos do também ex-primeiro ministro japonês (e criminoso de guerra) Nobusuke Kishi. No topo da hierarquia da seita esteve, até 2015, o antigo Chefe de Justiça da Suprema Corte japonesa, Toru Miyoshi.
Envolvidos em polêmicas de repercussão internacional — como a manutenção do Jardim de Infância Tsukamoto, em Osaka, e a adoração a mais de mil criminosos de guerra no Santuário Yasukuni, sendo 14 deles classificados como Classe-A — o Nippon Kaigi já conseguiu aprovar reformas educacionais importantes, criticadas mundialmente por ocultarem o passado imperialista do Japão.
No entanto, sua estratégia de restauração vê dificuldades em prosseguir, uma vez que a maior parte da população japonesa é contra a revisão do conteúdo pacifista da constituição japonesa. Dessa forma, as capacidades de agressão militar do Japão ainda são limitadas. Mesmo assim, o Japão consegue ocupar o seleto clube dos 10 países que mais gasta com armas no planeta.
Militarização chinesa?
É verdade que o orçamento de defesa chinês aumentou na última década. No entanto, não houve um aumento porcentual em relação ao PIB. De 2011 a 2020, o gasto chinês se manteve a uma relação de 1,28% do PIB, contra os 3,19% dos EUA.
Localizado há mais de 10 mil quilômetros de distância de Washington, os EUA tem aumentado fortemente sua presença no mar do sul da China. Segundo relatório que data agosto de 2020 do think tank chinês que analisa as movimentações no Mar do Sul da China, SCSPI, desde 2009 há um aumento nas atividades militares dos EUA. Na última década, a “presença de navios de superfície aumentou por mais de 60%” e uma média de 3-5 incursões de aviações militares todo os dias, representando mais de 1.500 anualmente.
O SCSPI afirma que o “número real é maior”, uma vez que não há dados públicos dos EUA sobre essas incursões e que “pequenas aviações [como drones de reconhecimento] não são incluídas e nem todas as aviações militares mantém o [radar] ADS-B transponder ligado o tempo todo”. O relatório diz também que atividades de aviações de reconhecimento, que acompanharam os porta-aviões USS Nimitz e USS Ronald Reagan Carrier Strike Groups nos dias 4 e 17 de julho de 2020, permanecem desconhecidas.
Nesses últimos exercícios supracitados, até mesmo o bombardeiro B-52, com capacidade nuclear, foi reabastecido em Guam (ilha ocupada pelos EUA). Segundo o comandante do esquadrão de bombas dos EUA, a força-tarefa “demonstra a capacidade dos EUA de implantar rapidamente em uma base operacional avançada e executar missões de ataque de longo alcance”, além de demonstrar a capacidade em “alcançar uma estação doméstica, voar para qualquer lugar do mundo e executar essas missões rapidamente”.
Segundo os EUA, há cerca de 28,5 mil soldados estadunidenses estacionados na parte sul da Coreia, operando 90 aviões de combate, 40 helicópteros de ataque e cerca de 60 do sistema de mísseis MIM-104 Patriot. Além da base naval em Jeju, os EUA dispõem de outras cinco bases na península coreana (Peyongtaek, Yongsan, Daeugu, Osan e Gunsan). A Coreia é a terceira região com a maior presença militar fora dos EUA, perdendo só para o Japão e a Alemanha.
Os EUA herdaram boa parte dos territórios conquistados pelo Japão em sua campanha fascista. É o caso das Ilhas Marshal, onde está localizado o atol de Kwajalein que abriga o Ronald Reagan Ballistic Missile Defense Test Site. A base faz parte do plano do comando espacial dos EUA em 1999, chamado Visions for 2020, que trás o conceito de “Dominação de Espectro Total” (Full Spectrum Dominance). Também nas Ilhas Marshal, no Atol de Biquini, entre 1946 e 1958, os EUA testaram mais de 20 bombas nucleares. A população local foi usada em testes humanos para testar os efeitos da radiação a longo prazo.
A vida na região nunca voltou ao normal, já que os efeitos da radiação continuam presentes na água, alimentos e peixes até os dias atuais. Câncer de tireoide e deformações em recém-nascidos é comum. A dieta dos moradores da região é baseada em produtos enlatados, importados dos EUA, uma vez que a produção local é desestimulada. Ainda hoje se realizam testes nas Ilhas Marshal, com mísseis saindo da Califórnia, nos EUA, há quase 8 mil quilômetros de distância dali.
O caso de Okinawa também é digno de nota. Trata-se de um arquipélago duplamente ocupado, primeiro pelo Japão que tenta há séculos suprimir a nacionalidade Luchuu, e que após a segunda Guerra passou a ser ocupado por 32 instalações militares estadunidenses. Okinawa está localizado a apenas 800 quilômetros de Shanghai (mais ou menos a distância entre o Rio de Janeiro e o sul de Goiás), de onde saíram ataques contra a Coréia, Vietnã, Camboja, Afeganistão e Iraque.
Outras centenas de bases militares e lily pads confidenciais são espalhadas pela Ásia-Pacífico, trabalhando para implementar o controle total integrado da região, ou Dominacação de Espectro Total — definido pelo pentágono como “persuasivo na paz; decisivo na guerra; proeminente em qualquer forma de conflito”. O cinturão imperialista antichina se expande também para a Índia e outros países, como mostrado no famoso mapa do documentário The Coming War on China (John Pilger, 2016).
Atualmente, a armada estadunidense conta com aproximadamente 3.300 caças (contra 1.900 da China), 550 avião tanque (18 da China), 675 aviões de transporte pesado (88 da China), 157 bombardeiros (contra da China), 400 lançadores de ICBMs (98 da China) e 11 porta-aviões (2 da China), e mais dois porta-aviões encomendados. Somando soldados estacionados na Ásia Central , Tailândia, Singapura, Filipinas, Guam, Coreia e Japão, ultrapassa a cifra de 100 mil. Isso sem contar a armada dos países ocupados e satélites dos EUA e da OTAN.
Expansão militar japonesa na contramão da opinião pública
Para influenciar a sociedade, o alto escalão político do Japão lança mão de mecanismos na indústria do seu softpower, como jogos e animações, de forma a popularizar a narrativas revisionista da seita. E enquanto o quadro não é revertido, os políticos do Nippon Kaigi tentam contornar as restrições impostas pela constituição, associando o país a aventuras militaristas no jogo de xadrez antichinês dos EUA.
Junto ao anúncio do adicional de 700 bilhões de ienes ao orçamento militar, o ex-primeiro ministro Shinzo Abe recomendou um “novo nível” na cooperação com a Austrália. Mas por que a Austrália?
Em setembro desse ano, Austrália, Reino Unido e EUA anunciaram um pacto militar chamado de AUKUS, que permite o tráfego de navios de capacidade nuclear por suas águas continentais. Analistas dizem que essa será a primeira “Marinha Global” do mundo.
Em abril de 2021, a Austrália rompeu unilateralmente com os acordos em infraestrutura estabelecidos com a China no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, da sigla em inglês). Esse rompimento veio em um momento que políticos australianos provocavam tensões diplomáticas com ofensas dirigidas à China, como sobre a origem da COVID-19 e supondo uma intencionalidade por trás da pandemia.
O fato é que há um clima antichinês latente na Austrália, algo parecido com o que vemos no governo brasileiro e seu alinhamento automático aos EUA. Fato esse percebido pela diplomacia chinesa, que já alertou ao Brasil para que “não se tornasse uma nova Austrália”.
Seguindo essa tendência de se submeter à hegemonia estadunidense, o Japão tem ampliado sua cooperação militar com a Austrália. Em 2017, Turnbull e Abe selaram um acordo que permitiria que os dois países realizassem exercícios militares conjuntos, além de oferecer apoio logístico mútuo.
Em novembro de 2020, Morrison e Suga ampliaram a cooperação para o âmbito de operações militares conjuntas, acordo esse que vinha sendo negociado há 6 anos. Essa foi a primeira vez, desde a década de 1960, que o Japão passou a permitir presença militar estrangeira outra que os EUA em seu território.
Já em setembro desse ano, o presidente estadunidense Joe Biden reuniu o Quad, um fórum militar informal composto por Índia, Austrália e Japão, além do próprio EUA. Segundo o analista sênior do Australian Strategic Policy Institute, Malcolm Davis, o Quad ainda não é uma “OTAN asiática”, mas está se movendo em uma direção semelhante.
Também no âmbito dos países do Quad e AUKUS, figuras importantes do Japão e Austrália já reiteraram diversas vezes seu comprometimento junto aos EUA na ingerência contra os assuntos internos da China, prometendo retaliação contra qualquer decisão que diga respeito a reunificação soberana da província chinesa de Taiwan.
Nessa seara antichinesa, o Japão amplia o seu leque de alianças militares. Isso representa uma ampliação de sua capacidade de agressão de forma direta e indireta, contornando os limites impostos pela constituição pacifista.
Que fique claro: EUA, Índia, Reino Unido, Japão e Austrália possuem, respectivamente, os 1º, 3º, 5º, 8º e 12º maiores orçamentos militares do planeta (dados de 2020), e que estão em uma ampliação agressiva para o próximo período. Os cinco países somam 49,6% da parcela mundial dos gastos em defesa, contra 13% da China.
Em valores absolutos, os cinco países gastaram 944 bilhões de dólares em defesa, contra US$ 193,3 da China. Para fins didáticos, excluamos os EUA da equação e somemos os países restantes. China, Índia, Reino Unido, Japão e Austrália, juntos, gastam o equivalente a 54,17% (US$ 399,8 bi) da receita militar estadunidense (US$ 738 bi). Os EUA sozinho representam cerca de 40% do orçamento mundial de defesa.
Apesar dos incansáveis esforços chineses em mediar as tensões — militares e diplomáticas — com o Japão e Austrália, a composição praticamente inabalável de sectários fanáticos do Nippon Kaigi no parlamento japonês, e de uma plutocracia australiana fruto do extermínio colonial britânico das populações locais, parece impedir qualquer negociação racional que tenha como base os princípios de respeito mútuo e de não-agressão. Para os racistas japoneses, é inaceitável ser ultrapassado por povos que outrora subjugados por eles.