A entrada do Egito no BRICS na recente expansão do grupo e a negociação junto aos governos do Catar e de Israel para a retirada de palestinos da Faixa de Gaza, através da passagem de Rafah, colocaram o país em evidência nos últimos meses.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam quais os principais ativos da economia do Egito, como o país pode contribuir para o BRICS e como pode ser beneficiado pelo grupo.
Para Muna Omran, doutora em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora convidada na especialização de história do Oriente na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), com a adesão ao BRICS, o Egito busca novos parceiros que possibilitem reduzir a dependência do Ocidente, não apenas em acordos firmados dentro do grupo, mas também com cooperações bilaterais com seus integrantes. Nesse contexto, ela afirma que a China desponta como uma das favoritas.
“O Egito comprava muita coisa da Rússia, principalmente na parte da agricultura, embora a agricultura no Egito seja também bem desenvolvida, faz parte da economia do país, mas não supre toda a população. São mais de 100 milhões de habitantes. Com a guerra na Ucrânia, a crise econômica no país aumentou. O país, que já tem uma desigualdade social muito grande, essa desigualdade aumentou. E hoje eu vejo que eles investem na China como esse novo parceiro. Aliás, a China está sempre circundando todos os países do Oriente Médio, do mundo árabe especialmente”, diz Muna.
Na avaliação de Muna, além da China, o outro interesse do Egito no BRICS é o estreitamento de laços com a Arábia Saudita, que também entrou para o grupo. Ela afirma que a cooperação entre os países precede a entrada no BRICS e pode se aprofundar com a parceria no grupo.
“Eles já mantêm uma parceria comercial muito grande [antes de oficializar a entrada no BRICS]. Para ter uma ideia, a Arábia Saudita está inaugurando mais uma linha aérea para o Egito, para a Península do Sinai. Para as cidades litorâneas da Península do Sinai há um interesse saudita muito grande, sobretudo porque a Arábia Saudita quer se abrir para o turismo, mas por questões internas, ela também busca fazer aquele turismo via Egito. Colocar o Egito nessa roda de turismo da própria Arábia Saudita”, explica a especialista.
Qual é a atual situação política do Egito?
Muna relata que o Egito, atualmente, vive uma situação delicada no que diz respeito à política. O atual presidente do país, Abdel Fattah al-Sisi, chegou ao poder em 2013 após um golpe de Estado depor seu antecessor, Mohamed Mursi, que era ligado à Irmandade Muçulmana e foi eleito na esteira dos protestos da Primavera Árabe.
Ela lembra que Mursi foi o primeiro presidente civil do Egito, e tinha al-Sisi como ministro da Defesa. Porém, ele gerou polêmica ao enviar projetos ao Parlamento no qual se dava plenos poderes.
“Muitos diziam que ele queria ser um faraó. Há um golpe militar em 2013, destituem o Mursi do poder e al-Sisi assume interinamente. Acontece a primeira eleição, ele [al-Sisi] é eleito; depois a segunda, e agora a terceira vez que ele está sendo eleito.”
Protagonismo do Egito na negociação com Israel beneficiou al-Sisi
Muna avalia al-Sisi como um líder populista que goza de grande popularidade, que ficou ainda maior após o protagonismo do país na negociação para a retirada de civis da Faixa de Gaza.
“Essa reeleição dele não é nenhuma novidade. Ele se reelegeu com 89% dos votos, com uma eleição que não tinha adversários com uma forte representatividade. O que contou como ponto positivo para ele foi a guerra de Gaza, do Hamas e de Israel. Porque o Egito começa a tomar uma posição de protagonismo para a mediação de um cessar-fogo humanitário. E isso acaba fazendo com que al-Sisi, pela população, fosse visto como um excelente mediador e um papel importante nesse jogo.”
Por que o Egito não abriu a fronteira para a passagem de palestinos?
Uma das grandes dúvidas em relação ao conflito entre Hamas e Israel é por que o governo egípcio não abriu a passagem de Rafah, permitindo a saída de palestinos em fuga da ofensiva israelense. Muna afirma que a recusa se deu “por uma questão de sobrevivência do próprio país”. Segundo ela, o grande temor do Egito é a infiltração de militantes do Hamas, que poderiam entrar no país entre a população em fuga.
“Isso pode afetar a estabilidade econômica, porque o Hamas é ligado à Irmandade Muçulmana. Ele nasce a partir de uma sociedade beneficente ligada à Irmandade Muçulmana. O presidente Mursi, que tinha sido eleito, tinha boas relações com Gaza. Al-Sisi se preocupa com isso, porque se houver qualquer motivo que possa abalar o seu governo, quem será que vai estar por trás?”, questiona a especialista.
Para Muna, “se a Irmandade Muçulmana voltar ao poder, corre-se o risco de uma islamização nos moldes conservadores do Egito”. “Hoje, a maioria dos militantes e líderes da Irmandade Muçulmana estão presos no país”, ressalta.
Ela afirma que outro motivo que levou o Egito a manter a passagem de Rafah fechada foi o temor de que a entrada em massa de palestinos resultasse em “uma segunda Nakba” (grande êxodo palestino de 1948, no contexto da Guerra Árabe-Israelense). Muna afirma que “se houver uma segunda Nakba, se enterra totalmente a ideia dos dois Estados”.
“Para a região, acaba sendo uma boa bandeira, entre aspas, na medida em que o Egito toma uma posição. Embora tenha um acordo de paz com Israel, ele toma uma posição de não abandonar a ideia dos dois Estados”, explica Muna.
Egito no BRICS reflete busca por menor dependência do Ocidente
Eliaquim Souza Macedo, mestrando em direito público e evolução social pela Faculdade Estácio, afirma que o Egito tem uma economia muito dependente dos EUA e, por consequência, sujeita às alterações do dólar americano.
Ele diz que essa dependência, ao mesmo tempo que beneficia o Egito com ajuda financeira americana, torna o país vulnerável, e cita como exemplo a alta na inflação registrada no Egito, que chegou a 36% após uma crise econômica ser desencadeada em decorrência do conflito na Ucrânia.
“Os investidores retiraram bilhões de dólares [do país], e o Egito tem uma economia que é muito baseada na agricultura. O trigo é fundamental para a economia egípcia, sendo que eles são comprados em dólar”, explica o especialista.
Nesse contexto, ele afirma que, em meio à crise, os agricultores optaram por vender para o exterior para obter mais lucro, em vez de abastecer o mercado interno, impactando a vida da população.
“Então essa escassez de dólares tornou a vida dos egípcios muito difícil. Tanto para pagar suas dívidas como para viver ali diariamente. Então, o que o Egito precisou fazer? Teve que desvalorizar a moeda [a libra egípcia] constantemente para […] tentar atrair investimentos estrangeiros, que é uma grande dificuldade que o Egito teve.”
Ele afirma que a entrada para o BRICS pode ser uma saída para a economia egípcia, já que permite ao país praticar a chamada “ambiguidade estratégica, uma vez que ele estaria jogando de ambos os lados”.
Macedo lembra que “a Rússia está construindo a primeira central nuclear do Egito, e a China está construindo parte da nova capital, que é a cidade administrativa que o Egito está construindo no meio do deserto”.
Diante dessa proximidade — e, agora, com a entrada do país no BRICS —, a expectativa, segundo o especialista, é de que os investimentos no Egito aumentem tanto por parte de Moscou e Pequim quanto por parte de Washington.
“Os Estados Unidos continuam a garantir ao Egito uma ajuda anual de US$ 1,3 bilhões [cerca de R$ 6,3 bilhões]. É uma parceria que o governo americano tem com as Forças Armadas do Egito. Então, como seria boa a entrada do Egito no BRICS? Aumentaria a pressão para os países ocidentais, temendo o avanço tanto da China como da Rússia.”
Ademais, ele destaca que muitos países que compõem o BRICS já são grandes parceiros comerciais do Egito, e cita como exemplo China, Rússia, Emirados Árabes e Arábia Saudita, estes últimos que passaram a fazer parte do grupo neste ano.
“O segundo maior parceiro comercial é a China, que também faz parte do BRICS, e o terceiro maior parceiro do Egito é a Arábia Saudita, que também agora vai estar fazendo parte dessa nova entrada.”
Entrada do Egito contribui para a demanda do grupo pela desdolarização
Macedo aponta que o desejo do Egito de se livrar da dependência do dólar vai ao encontro da demanda de outros países do grupo pela desdolarização nas transações.
“Qual é o principal objetivo do Egito em fazer parte do BRICS? É se libertar da dependência do dólar. O Egito já vem fazendo alguns acordos, tanto com a China, como com a Índia, como com a Rússia, tentando descobrir meios alternativos, sistemas alternativos de comércio, visando fazer negociação em moedas locais, seja a libra egípcia, ou o rublo, ou o yuan, visando aumentar os comércios entre os países, utilizando as suas próprias moedas, reduzindo essa dependência do dólar”, explica.
Por outro lado, entre as grandes contribuições que o Egito pode dar para o BRICS, está a sua posição estratégica, que recentemente foi mencionada pelo ministro egípcio de Indústria e Comércio, Ahmed Samir Saleh, em entrevista à Sputnik. O ministro disse que o país agora passa a ser “a janela do BRICS” para o Oriente Médio e o Norte da África e contribuirá significativamente para o comércio do grupo com a região.
“A sua localização geográfica também lhe dá a oportunidade de desempenhar um papel mais significativo na venda de produtos dos Estados-membros do bloco ao continente africano”, disse o ministro.
Para Macedo, outro ponto positivo que o Egito traz para o BRICS é o tamanho de sua população.
“O Egito hoje tem uma população que passa de 100 milhões de habitantes. A gente está falando do terceiro país mais populoso do continente africano. É um país também que em área é muito grande e está localizado em uma área extremamente estratégica entre o mar Vermelho e o mar Mediterrâneo, fazendo divisa. Está próximo da Arábia Saudita, está próximo de Israel, faz ligação direta com a Grécia, com a Turquia.”
Ele acrescenta que o Egito tem insumos materiais importantes, que é um país rico em petróleo e que o país também terá uma contribuição com muitas trocas comerciais e cooperação com os países do BRICS.
“Mas, sobretudo, o grande aporte que o Egito vai estar fazendo [ao BRICS] vai ser voltado para essa questão de reduzir a dependência do dólar. O Egito é entusiasta disso, e a Rússia e a China também são entusiastas, bem como a Índia. Então essa vai ser a grande motriz, porque você vai ter um cliente importante, tanto um cliente como um parceiro [dentro do BRICS], que é o Egito, dentro de um continente que é um continente-chave onde mais cresce a população”, conclui o especialista.