Estilizar a vida e a arte folclórica na selva remete-nos a um olhar sobre o Festival Folclórico de Parintins, no coração da Amazônia, envolvendo as agremiações dos Bumbás Garantido e Caprichoso, das cores vermelha e azul, respectivamente. Trata-se de uma estética da floresta com seus mitos, lendas e rituais da tradição dos povos amazônicos. O Boi Bumbá Garantido traz neste ano de 2022 o tema *Amazônia do Povo Vermelho*, após uma pandemia que matou e que não podemos tergiversar em seu enfrentamento, mas cujos significados e simbologias assentam-se, justamente, na força e resistência sociocultural dos povos indígenas, nordestinos e afrodescendentes.
A Amazônia é a casa dos povos ameríndios, sujeitos que sobreviveram às chamadas guerras justas, aos descimentos e que escaparam do genocídio promovido pelos colonizadores. Eles chegaram no sec. 19 para trabalhar nos seringais, juntaram-se aos indígenas e à população negra que habitava a região.
Estes nordestinos tornaram-se acidentalmente nativos como anuiu Araújo Lima (1975). Trouxeram sua culinária, seu folclore, sua religiosidade popular, as formas tradicionais de lavrar a terra, enfim, vieram com seus corpos de trabalho resistentes ao sol causticante. Trouxeram seu imaginário social contendo histórias míticas, lendárias, os causos, sua cantoria: forró, xaxado, merengue e outros. Todos esses valores amalgamaram-se à cultura indígena em estreita relação com a terra/floresta/água.
A Amazônia, pátria indígena, negra, revolucionária, é aquela que entoa um canto poético à resistência, uma celebração à luta, ao espírito cabano. É a região agredida e explorada pelo capital e que se recusa a entregar sua soberania. É a Amazônia do povo vermelho que encontra forças no útero da Mãe-Terra, da Pachamama, que evoca seus ancestrais e que tem uma relação de afetividade e pertencimento com os rios e a floresta. Esse sentimento de amor com a sua terra é demonstrado por Davi Kopenawa (2015), ao afirmar: “nasci nesta floresta e sempre vivi nela”. Toda a existência dos povos nativos é cingida pelo trabalho, como também por um acervo cultural associado a uma mística que envolve as danças, os ritos e toda uma rede de significados e simbologias. Nas festas, as danças tem um sentido místico que une fé e vida, sendo a colheita e a prosperidade evocadas aos pés de suas entidades sagradas. O Boi Vermelho faz evocar no espetáculo o imaginário amazônico das ecantarias, das narrativas selvagens, das histórias contadas, os bichos visagentos, mitos e lendas, com manifestações simbólicas de variadas cepas e expressões. É a região étnica dos 140 povos indígenas autoidentificados; mais de dois mil quilombos e centenas de comunidades tradicionais. São os povos vermelhos que se transmutam em cores pintando seus corpos com jenipapo, urucu, enfeitando-o com plumagens, ramagens, cocares, para demarcar a diferença étnica. A Amazônia dos peles vermelha é aquela da acolhida aconchegante, do sorriso fácil, dura e doce, mas é também aquela do derramamento de sangue dos trabalhadores que lutam por seus territórios. O povo vermelho é o verdadeiro dono da Amazônia, seu mundo, sua teogonia e cosmogonia. Esquecidos pelas políticas públicas, produzem a sua própria existência com criatividade e inteligência numa autopoiesis (MATURANA, 2001). São mulheres e homens que acreditam na utopia de um mundo melhor, num amanhã que ainda canta. Um ágape que transcende a si próprio para alcançar o outro, com sonhos e esperança, rumo à terra sem males.
Texto por: Antônio Andrade, Presidente da Agremiação do Boi Garantido e Iraildes Caldas Torres, Professora da Universidade Federal do Amazonas. Doutora em Antropologia Social. Diretora da DGE -Direção Geral de Espetáculo do Garantido.