Final de 2023, o acordo entre o Mercosul e a União Europeia, em pauta há mais de vinte anos, parou novamente. O próprio governo brasileiro e, em particular o Itamaraty, tinha criado uma expectativa que o texto negociado em 2019 iria finalmente seguir com passos firmes o rito de aprovação pelos poderes legislativos seguido de ratificação pelos poderes executivos para entrar em vigor.
O que deu errado? Pergunta nada fácil.
Em primeiro lugar há de se entender que o texto que caiu no colo do Lula, foi negociado pelo que tem de mais liberal no Mercosul. No Brasil, foi logo depois da derrubada da presidente Dilma Rousseff em 2016 que se buscou retomar o acordo indicando para os negociadores europeus que os parâmetros seriam outros: sem preocupações com a indústria nacional, uso de políticas desenvolvimentistas ou exigências de contrapartidas mais equilibradas.
Em 31 de agosto de 2016 Michel Temer tomou posse como presidente da República Federativa do Brasil e em menos de dois meses as negociações retomaram oficialmente. Não é exagero afirmar que essa retomada fez parte da agenda econômica do golpe.
Mesmo assim, demorou para fechar essa nova rodada de negociação o que ia acontecer em 28 de julho de 2019. Mauricio Macri, presidente da Argentina, (2015-2019) estava na presidência rotativa do Mercosul e se preparando para a campanha eleitoral.
Ele imaginava que o anúncio do pré-acordo poderia ajudar a se manter na presidência da Argentina. No Brasil, o governo Bolsonaro estava no seu primeiro ano. Paulo Guedes, o czar da economia, deu continuidade à visão dos negociadores do governo Temer de que a maior abertura possível, junto com compromissos em restringir políticas industriais ativas, não seriam compromissos, mas medidas necessárias.
Algo razoável para muitos das viúvas dos tucanos em altas posições no Itamaraty. Codificados em um Tratado de Livre Comércio essas normas vinculariam inclusive os governos subsequentes.
Os europeus aproveitaram a boa vontade de seus interlocutores sulamericanos. Havia também um outro movimento que deve ser entendido no contexto da rivalidade e disputa comercial entre EUA e a China.
O governo da Alemanha começou a assumir uma postura mais ativa para defender sua manufatura e posições fora da Europa, entre as quais se destaca o Mercosul. Para isso, interessava não somente a abertura comercial para seus produtos, mas também a regras sobre compras públicas, transparência, concorrência e restrição à atuação de empresas estatais, entre outros fatores. Os países da União Europeia em seu conjunto ainda mantêm o maior estoque de Investimentos Externos Diretos no Mercosul, termo utilizado para indicar os investimentos das empresas multinacionais, à frente dos EUA e da China. Mas, após se tornar o principal parceiro comercial, a China começou também a avançar em termos de investimentos.
Contudo, podemos afirmar que a retomada das negociações pelos governos de orientação neoliberal correspondia a um esforço geral por parte das autoridades europeus para defender a competitividade das empresas de seu continente e, mais estrategicamente, para a política europeia de se afirmar no mundo de hoje, ao lado da China e dos EUA. O acordo poderia dar uma contribuição, embora modesta, a esse esforço.
Finalizado as negociações em meados de 2019, o discurso das duas partes enfatizou a importância do acordo para a retomada do crescimento no Mercosul. Do lado europeu, se enfatizou ainda a inclusão de normas de proteção ambiental e aos direitos trabalhistas. Na página da Comissão Europeia usa-se até uma expressão usual da diplomacia chinesa: win-win (ganha-ganha). Só alegria: crescimento, emprego e desenvolvimento sustentável para todas as partes envolvidas. Na Argentina, o candidato peronista Alberto Fernandez tinha se tornado vencedor e criticou duramente o acordo, mas não apontou caminhos alternativos.
Mas ai surgiu uma grande confusão. O texto negociado em 2019 é bom ou ruim? É o velho problema: quem define o que é o interesse nacional que os negociadores do Itamaraty deveriam defender? De acordo com a imprensa comercial brasileira o acordo seria muito bom para o Brasil e quase uma concessão por parte dos europeus.
Pois bem, não há dúvida que o agronegócio e setores financeiros do Mercosul ganham, embora até nesses pontos os europeus fizeram uma dura negociação. E de outro lado do Atlântico o grande ganhador seria a indústria europeia, em particular a alemã. E vejam que ao final dos prazos de transição, os produtos manufaturados entram com alíquotas e cotas zero, enquanto para os produtos agrícolas do Mercosul se mantem cotas.
Logo tradicionalmente parte do setor agrícola europeu está cauteloso ou contrário ao acordo. Isso pesou desde sempre em países onde esses grupos têm maior influência política, em particular no caso da França e também Irlanda e Polônia.
Contudo, se no caso da Europa, setores poderosos, liderados pelo setor industrial alemão e a própria Comissão Europeia ficaram entusiasmados com o resultado do acordo, por que não foi dada sequência à tramitação antes das eleições de outubro de 2022? Ainda mais, sabendo que havia grande chance de, no Brasil, um governo com uma outra orientação de política econômica ganhar as eleições, como de fato ocorreu.
Pois bem. Isso se explica por um conjunto de fatores: uma diversificação da oposição interna na Europa e uma mudança no contexto geral com covid e a guerra na Ucrânia. Primeiro, a já mencionada oposição tradicional dos agricultores na Europa, que pesou em particular na França, que passou por eleições presidenciais em abril de 2022.
Segundo, ganhou maior peso político uma oposição genuína de grupos ambientalistas que, em diálogo com grupos parceiros no Brasil, entendem que qualquer acordo que estimula a ampliação da agroexportação acaba tendo impacto negativo para o meio ambiente, alegando inclusive pressão para maior desmatamento. E, as pautas ambientais tinham ganhado maior força e visibilidade política nas últimas eleições na Europa.
Embora, a oposição tradicional pegue carona nesse discurso, são grupos muito diferentes, algo não sempre compreendido pelos negociadores do Itamaraty. Junta-se a isso o fenômeno do avanço da nova direita radical que rejeita a tal da globalização e defende um nacionalismo econômico, antipático a qualquer novo tratado de livre comercio.
A pandemia por sua vez mudou bastante a visão na Europa, seguindo a tendência nos EUA, sobre o uso do gasto público e regulação estatal para sustentar políticas industriais-tecnológicas. Exemplo é o apoio à reestruturação da indústria automobilística visando sua eletrificação e evitar uma excessiva dependência das tecnologias importações chinesas.
Estamos falando da mesma Comissão Europeia que não hesitou um minuto para entrar com uma queixa na OMC contra o programa Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovarauto) do governo Dilma em 2013. Inovarauto previa incentivos à inovação tecnológica e proteção da cadeia produtiva de veículos automotores através de incentivos fiscais. Ou seja, muito parecido ao que a próprios europeus começaram a fazer.
Já a guerra da Ucrânia, que se iniciou logo em seguida da pandemia, teve outro efeito: a pauta de prioridade mudou drasticamente. O grande problema para a indústria europeia, e a alemã em particular é o custo de energia que tira de cara sua competitividade diante seus competidores chineses e estadunidense. Observe por exemplo o grande interesse, em particular da Alemanha, para o potencial de produção de hidrogênio verde no Nordeste do Brasil.
Diante desse conjunto de forças pro e contra, com variedades de prioridades operando em ambos os lados do Atlântico, o que prevaleceu durante o governo de Bolsonaro foi a inércia. Porque? No fundo, o que pegou mesmo foi a imagem de Bolsonaro na opinião pública europeia no contexto de eleições na Alemanha (2021) e França (2022).
Ângela Merkel, a ex-primeira-ministra da Alemanha na época, até tentou, mas não conseguiu convencer o parlamento alemão e o europeu de que era melhor amarrar o governo Bolsonaro a esse acordo com clausulas de proteção ambiental, do que deixá-lo solto. Resumo da opera: quem na Europa era a favor de uma tramitação vitoriosa do acordo negociado em meados de 2019 queria as duas melhores coisas: o acordo de jeito que a turma ultraliberal de Temer/Bolsonaro/Macri tinha negociado, mas na foto com o Lula.
Não era mais imaginável avançar com esse acordo com Bolsonaro no governo do Brasil. Assim, também esperava-se ganhar tempo diante a própria opinião pública europeia, passando pelas eleições na Alemanha e França. Agora, como a Comissão Europeia iria explicar isso para o governo Bolsonaro? O truque foi o tal de “carta-anexa” que depois caiu no colo do Lula junto com o texto de 2019.
A Comissão Europeia explicou para os negociadores do Mercosul que havia uma forte oposição por parte dos poderes legislativos e da opinião público pelo fato de não considerarem as cláusulas de proteção ambiental suficientes. Mas ao mesmo tempo as partes estavam de acordo que não era desejável reabrir as negociações, considerando sua complexidade e envolver 27 países só de lado da União Europeia.
Reabrir o acordo poderia estimular muitos movimentos oportunistas de todo tipo. A solução mágica era uma “carta-anexa” (side letter) que seria somente declaratória, como se fosse um compromisso adicional sem efeito jurídico sobre o acordo em si.
Logo, a negociação sobre o conteúdo da carta não seria reabrir o acordo. O governo Bolsonaro concordou porque estava ansioso para assinar o acordo e agradar parte importante da sua base e para Paulo Guedes seria um passo em direção a um Brasil mais liberal. E ainda concordaram que a Comissão Europeia iria enviar a minuta dessa tal de carta-anexa. Ai que estava a malicia dos europeus. Ficaram enrolando e jamais enviaram uma versão até o Lula assumir a presidência. Isso, porque sabiam que o governo Bolsonaro iria aceitar qualquer texto, por mais humilhante que fosse, só para o acordo avançar.
Faltou, porém, aos europeus a sensibilidade, de, diante da eleição de Lula, simplesmente minimizar a carta, mas este ia aparecer de forma mais questionável possível em fevereiro de 2023. Pelo jeito os europeus eram convencidos que seu amigo Lula iria assinar o acordo, mesmo não sendo perfeito.
Afinal, Emanuel Macron, presidente da França, tinha recebido Lula antes das eleições como um estadista e um representante do Partidos Socialdemocrata de Alemanha, força majoritária no governo alemão em 2023, tinha até visitado Lula na prisão em Curitiba. Além do mais, havia as sinalizações claras de vários grupos bem representados na administração Lula e no Congresso de que avançar com o acordo seria positivo para o novo governo.
A imprensa comercial e think-tanks financiados pelos maiores beneficiados do acordo, como o CEBRI, jogaram sua parte. E, nisso, havia também a convicção por parte dos europeus, esses sim mais realistas, que com uma aceitação do Brasil os demais governos do Mercosul iam seguir.
Para os europeus era importante avançar em 2023, porque em junho 2024 estão previstas as eleições para o Parlamento Europeu. Não seria conveniente ter confusão em torno do acordo durante a campanha eleitoral, por menor que fosse o assunto na pauta geral que está em jogo nessas eleições. E depois das eleições pode complicar ainda mais porque haverá uma nova composição da Comissão Europeia, ou seja, uma possível troca de negociadores. O segundo semestre de 2023 também parecia promissor por ter de lado do Mercosul o Brasil e de lado da UE a Espanha na presidência rotativa.
Até aqui tudo bem, tudo conforme o script, cada um defendendo sua posição e/ou seu interesse. Mas e o governo Lula? Qual a posição do governo Lula e seu integrantes a respeito do texto negociado em meados de 2019 por seus oponentes políticos? Ai aqui complica mais um pouco.
O próprio Celso Amorim, principal formulador da política externo no atual governo, tinha, em várias ocasiões públicas, criticado duramente o acordo e chegou a caracterizá-lo, corretamente, de neocolonial. Há dois precedentes claros. A primeira a posição do Lula e Celso Amorim com relação à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), quando ao apontar a forte assimetria entre as partes, o risco para a base industrial e a limitação da soberania econômica se fez uma oposição pública. Todo mundo sabia qual era a posição do governo, concordando ou não.
O segundo precedente foi a rodada de negociação do próprio Acordo Mercosul-União Europeia que começou no segundo governo FHC e caiu no colo do Lula em seu primeiro mandato. Em 2004 chegou-se muito perto de um acordo.
Havia, porém, uma clara noção de que o acordo em si não garantirá crescimento e tenderia a ir na contramão do anunciado esforço do governo Lula de retomar o processo de industrialização. Ao final, o programa de governo que o tinha elegido em 2003 previa exatamente um esforço para recuperar o papel da indústria brasileira, lançando mão de mecanismos como conteúdo local, compras governamentais e crédito de instituições públicas.
Em 2004, a vontade política era clara: fechar um acordo que contribuísse com o esforço de recuperação da manufatura no Brasil e também na Argentina. Portanto, rejeitaram-se as propostas da União Europeia de incluir temas como compras governamentais. Segundo, no que diz respeito às ofertas de tarifas e cotas, a UE queria muita abertura para sua manufatura e pouca para a exportação agrícola do Mercosul, sem falar, evidentemente, dos subsídios. Diferença grande com a situação em 2023 é que na época, parte importante do próprio empresariado brasileiro não se mostrou, naquela ocasião, interessada em fechar o acordo naqueles termos. Isso valia, aliás, também para as negociações com a Alca.
O texto que ia cair no colo do Lula em 2023 era público e conhecido havia três anos e meio. Evidente que não seria um assunto de grande importância na campanha eleitoral de 2022, mas era tema caro para as gestões liberais de Temer e Bolsonaro.
A ambiguidade começou nas próprias Diretrizes para o governo Lula/Alckmin na qual se afirmou corretamente que é preciso elevar a competitividade, mas ao elencar alguns instrumentos menciona “ampliar os acordos comerciais internacionais relevantes”. Qualquer acordo comercial “relevante” aumentaria a competitividade da economia brasileira? E o que seria “relevante”?
Embora não explicite o acordo aqui tratado, era o mais importante que estava na pauta. Parece que esse ponto entrou nas Diretrizes do governo Lula/Alckmin a pedido de um dos partidos menores da coligação. O que importa aqui é que não entrou uma clara afirmação de que era preciso renegociar o Acordo União Europeia-Mercosul.
Motivo não faltava: o texto de 2019 rima muito bem com a visão ultraliberal de Paulo Guedes, mas não com as diretrizes do governo Lula quando estes falam da nova industrialização em bases ecológicas e digitais. Tampouco há registros de tentativas de começar informalmente a discutir com interlocutores privilegiados da parte Europeia algumas cláusulas chaves que deveriam passar por alterações para o acordo poder avançar no governo Lula.
Houve sim claras sinalizações positivas por parte do vice-presidente e outros expoentes do governo mais próximos aos interesses contemplados pelo acordo. Gerardo Alckmin chegou a expressar que o acordo aumentaria a competividade da indústria brasileira porque permitiria importar bens de capital mais modernos sem alíquotas. Essa ideia provavelmente era (e é) compartilhada pelos negociadores do Itamaraty. Mas continuava um mistério o que o Lula ia fazer com o acordo.
Havia um dilema claro. O acordo de jeito que está é anacrônico. Por via tortas, Macron acertou nessa qualificação. É um acordo que no fundo defende a ideia que liberalizar o comercio em si gera condições de ganha-ganha para todas as partes envolvidas, independente das assimetrias existentes entre eles. Além do mais, essa era a visão prevalecente na década de 1990. Hoje a própria União Europeia e os EUA redescobriram, conforme já observado, a importância de política governamentais ativas para estimular e fortalecer capacidades industriais-tecnológicas endógenas.
De outro lado, seria pouco realista imaginar que se pudesse começar do zero para elaborar um acordo que pudesse dar conta dos desafios para os países do Mercosul retomaram sua caminhado para sair de condição periférica em um mundo que precisa dar resposta às crises climáticas e em que se intensifica uma concorrência em torno do controle das tecnologias da quarta revolução industrial.
Logo o dilema era; enterrar esse acordo e partir para intensificar parcerias biliterais com os principais parceiros que não envolvem a Tarifa Externa Comum, inclusive com a própria Comissão Europeia. Ou, identificar algumas alterações pequenas, mais emblemáticas para que se pudesse sugerir que o acordo seria mais aceitável para o governo Lula. Aparentemente o governo ao final quis fazer transparecer que era esse o caminho. É, de fato, razoável defender que ao Brasil, e o Mercosul no geral, interessa fortalecer relações com Europa, para ganhar mais poder de alavancagem e autonomia com relação aos EUA e à China.
Mas não está tão claro. Fica a dúvida porque não se começou a preparar essa negociação desde o primeiro momento, deixando claro exatamente os pontos a serem renegociados. Sem dúvida para os europeus uma renegociação estava fora de cogitação.
Ainda no início de junho de 2023 Valdis Dombrovskis, responsável pelas negociações por parte da Comissão Europeia, insistiu que não seria conveniente reabrir as negociações, considerando que estas são fruto de processo de vinte anos envolvendo muitos países. Isso foi na véspera da presidência rotativa do Brasil no Mercosul e da Espanha na União Europeia.
Lula optou ao final por explicitar duas críticas. A primeira, mais dura e insistente à mencionada “carta anexa” que ele considerava, com razão, uma aberração, porque, tudo indica o faria assinar um documento no qual ele contradiz normas que estão na constituição e legislação ordinária brasileira ou em tratados do qual o Brasil faz parte.
Observe que o conteúdo da carta nunca foi tornado público. Mas, como explicado, ela não tem vinculação jurídica ao acordo, mas somente um caráter declaratório ou interpretativo. Portanto, focar a crítica real parecia uma forma de postergar o processo sem atacar de fato o problema central: o conteúdo mesmo do acordo.
Sobre isso Lula concentrou sua crítica nas cláusulas sobre compras governamentais que de jeito que estão no acordo complicariam usar esse instrumento para fins de estimular políticas de industrialização, emprego e tecnológicas. Mas há muitas outras questões que pudessem suscitar dúvidas a respeito do acordo. Por exemplo, no caso do setor automobilístico, algo sempre tão caro ao presidente Lula.
O setor automobilístico, incluindo autopeças, é de grande interesse para a Europa, em particular a Alemanha, e extremamente sensível no Brasil e na Argentina. A tarifa de 35% cobrada sobre a importação dos carros europeus cairia para 17,5% em até dez anos, com uma cota temporária de 50 mil carros para o Mercosul nos primeiros sete anos, sendo 32 mil para o Brasil. As montadoras tendem a usar essa cota para exportador carro de luxo (ex. Audi, BMW).
Em 15 anos, a taxa cairá a zero. Nenhuma menção à transferência de tecnologia, obrigações de investimento no país. Em autopeças, a redução das tarifas de importação deve ocorrer em três tempos diferentes, dependendo do item: 10 anos, 12 anos e 15 anos.
A transição em 15 anos parece tranquila e modesta. Mas o que significa isso? O setor automobilístico está passando por uma fase de reestruturação brutal com o avanço dos carros elétricos. Isso exige investimentos e novas tecnologias, de produto e de processo. A própria produção e distribuição começam a ser drasticamente impactadas pela indústria 4.0. Nos próximos 15 anos, quando o setor passará por essas mudanças drásticas, o Mercosul abrirá seu mercado sem cota e a tarifa zero. O que vai ser produzido ainda aqui?
Pela lógica do mercado, e será a única que vai sobrar, serão as peças e componentes de menor valor agregado, talvez montagem final e olhe lá. Vai chegar a modernidade sim, mas na forma de consumo para alguns e não como capacidade tecnológica endógena. E ainda a indústria europeia vai conseguir projetar suas normas ambientais e de segurança.
Vale lembrar que o mercado de automóveis no Brasil, durante vários anos, até 2015, era o quarto maior do mundo, somente atrás da China, EUA e Japão. Em 2014 ainda se vendiam mais carros no Brasil do que na Alemanha. Wellington Damasceno, diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, comentou, com perspicácia, a respeito: “No caso da União Europeia e Mercosul a maioria das matrizes que operam no continente sul-americano são de origem europeia. A tendência é que essas empresas concentrem a produção nos países de origem, tirem produção daqui da América do Sul e aumente a sua exportação para cá respectivamente.”
Há outras questões que podem ser levantados, mas o fato que é que não foram. É fato também que havia divergências não explicitadas publicamente dentro do governo a respeito do acordo como já explicado. O embaixador responsável pelo Itamaraty, Mauricio Lyrio afirmou final de novembro que “avançamos muito” e que sobrou só “um conjunto pequeno de diferença que a gente tem que acertar”.
Do MDIC houve afirmações de que a decisão política de fechar o acordo teria sido tomada no início do mandato e que os obstáculos seriam técnicos e limitados. O que não ficou claro é a opinião e estratégia do núcleo duro do governo e do próprio Lula: empurrar com a barriga até que se torne inviável? Culpar a intransigência dos europeus com a carta-anexo? Ao mesmo tempo, talvez um entendimento que a Europa também já estava em outra fase e que a oposição ao acordo seria forte.
Isso pode explicar a resposta do Macron em coletiva de imprensa já na fase final da revisão (“sou contra”), seguida de uma afirmação do Lula alguns dias depois de que o novo texto estava “mais equilibrado, mas mesmo assim insuficiente” e “se não houver acordo, paciência”. Parecia quase jogo combinado. Até alguns dias antes Celso Amorim tinha sintetizado de forma precisa o Acordo: “oferece pouco e exige muito”, alegando inclusive que, apesar dos avanços ainda havia “insuficiências sérias”.
De toda forma, isso reconfirmou que houve uma renegociação do texto de 2019 que não se limitava à carta-anexa, não obstante a clara indicação dos europeus que isso não seria conveniente para garantir a tramitação do acordo. Não ficou muito claro em que momento a Comissão Europeia aceitou renegociar parte do texto e também não houve manifestações públicas sobre quais as cláusulas. Talvez a percepção de que Lula não ia avançar com o acordo sem nenhum ajuste, gerou uma abertura muito em cima da hora . Enquanto não se chega a um novo texto final as negociações correm sob sigilo.
Aparentemente se tentou negociar a exclusão de alguns setores sensíveis das restrições impostos pelo acordo, em particular na área de saúde e setores de tecnologia verde.
A Comissão Europeia diz defender uma diplomacia publica e transparente. Foi ela quem tornou público primeiro, em 2019, o texto completo negociado, antes que o Itamaraty o fizesse. Mas no caso dessa suposta nova rodada de negociação não há nenhum registro.
A última rodada oficial de negociação registrado foi de abril de 2019 e o último registro de um diálogo com a sociedade civil sobre os acordos de comércio livro na América Latina, em dezembro de 2022. A única referência a essa nova rodada de negociação que deve ter iniciado na presidência rotativa do Brasil no Mercosul, que encontramos no site da Comissão Europeia é um comunicado reproduzido também no site do Itamaraty do dia 07 de dezembro, justo o dia que ficou claro que não haveria um desbloqueio do acordo.
O texto diz que “a UE e o Mercosul estão engajados em discussões construtivas com vistas a finalizar as questões pendentes no âmbito do Acordo de Associação. Nos últimos meses, registaram-se avanços consideráveis”. Assim, nenhuma das partes quis revelar o que exatamente foi revisado, mas fica a impressão de que ambos combinaram passar uma mensagem positiva: estamos avançando e o texto está melhorando. Ficamos com a curiosidade: melhorando em que? Para quem? Por que esse excesso de sigilo? De todo modo, foi divulgado que se prevê a conclusão da renegociação para fevereiro, já com o presidente de Paraguai, Santiago Peña na presidência rotativa do Mercosul. Será?
Já na Cúpula Social do Mercosul, realizada na véspera da Cúpula Presidencial, não houve dúvida a respeito do caráter do acordo, nem motivo para enrolar na linguagem. A declaração final afirma que a concretização do acordo “…significaria o aprofundamento do modelo capitalista, extrativista, colonialista, patriarcal, racista, fortalecendo as elites mais retrógradas e violentas de nossa região, ameaçando o ambiente e a sociobiodiversidade e colocando em risco a soberania de nossos povos e territórios.”
Para complrcar mais, no meio da confirmação do desacordo houve ainda a eleição de Javier Milei na presidência de Argentina.
Embora ele tenha expressado seu desgosto com o Mercosul durante a campanha eleitoral, não demorou a expressar, por meio da Diana Modino, a atual Ministra de Relações Exteriores, interesse no acordo. Isso não deve surpreender: os setores do macrismo que estavam a frente da negociação, em 2019, se aproximaram do Milei e sua agenda coincide com a visão neoliberal do Acordo.
Difícil avaliar qual o destino do texto tão cuidadosamente negociado pelo neoliberais nos governos Macri, Temer e Bolsonaro e supostamente melhorado, mas não o suficiente, no governo Lula. Fato é que há grande espaço para qualificar e ampliar as relações com os parceiros europeus em torno de pauta de interesse do governo Lula e que não precisam necessariamente desse acordo.
Um exemplo foi a visita do Lula para Berlim, no início de dezembro, exatamente no mesmo período que ficou claro que o Acordo iria ficar no freezer mais um pouco, sem saber se seu prazo de validade ia aquentar mais uma demora. Nessa vista Lula assinou vários acordos com o governo alemão com ênfase na questão energética, transição ambiental e cooperação tecnológica.
Um tema que se discute muito ultimamente é o potencial do Brasil em atrair um novo ciclo de investimentos de empresas internacionais que estão à procura de localizações geográficas com disponibilidade de energia verde, barata, seguro e abundante, fenômeno conhecido como powershoring. É um outro exemplo de estratégia que passam por outro tipo de acordos. No fundo o que Brasi sente falta é de uma política abrangente com iniciativas ousadas e regras claras para avançar na prometida nova política industrial, cujas linhas gerais foram anunciados no meados do ano passado. É urgente incentivar investimentos produtivos e avançar na geração de capacidade industrial-tecnológica endógena. Ao final é essa estratégia que deveria apontar os parâmetros das negociações com os parceiros e não o contrário.
*Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.