Durante o XX Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), realizado em outubro de 2022 em Pequim, capital nacional da China, um trecho do relatório apresentado pelo presidente chinês, Xi Jinping, destacou a principal diferença entre o caminho chinês e o ocidental para a modernização.
O documento, intitulado “Manter Erguida a Grande Bandeira do Socialismo com Características Chinesas e Lutar com União pela Construção Integral de Um País Socialista Moderno“, foi lido por Xi na área nobre do Grande Salão do Povo no dia 16 de outubro de 2022.
“A nossa modernização segue o caminho do desenvolvimento pacífico. Não repetimos o antigo caminho de alguns países de realizar a modernização através de guerra, colonização e saqueio. Esse caminho, que buscava benefícios próprios à custa de outros e estava cheio de sangue e crime, trouxe sofrimentos profundos aos povos das nações em desenvolvimento. Ficamos firmemente ao lado da posição correta da história e do progresso da civilização humana, mantendo sempre no alto a bandeira da paz, desenvolvimento, cooperação e benefício mútuo. Buscamos o nosso próprio desenvolvimento ao defender a paz e o desenvolvimento global, ao mesmo tempo, defendemo-los com o nosso próprio crescimento.“
A partir dessa fala de Xi, me causou espanto o posicionamento de autoridades, diplomatas e da mídia chinesa em exaltar o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, como um herói.
Kissinger morreu aos 100 anos no dia 29 de novembro e é inegável a importância dele no estabelecimento das relações entre China e EUA em 1972.
Xi enviou uma mensagem de condolências ao presidente dos EUA, Joe Biden, na qual afirmou que Kissinger “era um estrategista de renome mundial e um velho e bom amigo do povo chinês.”
A outra face de Kissinger foi totalmente esquecida pelas homenagens que recebeu na China.
Se Pequim se posiciona contra a tática ocidental de “guerra, colonização e saqueio“, como explicar a omissão do legado nefasto de Kissinger no Sul Global?
Não é razoável omitir que Kissinger era o secretário de Estado de Washington durante a Guerra do Vietnã, país que faz fronteira com a China. Ele foi um dos mentores do cerco aos combatentes da Frente Nacional para a Libertação do Vietname, os vietcongs.
Conforme relata a Enciclopédia Britannica, um total de 2 milhões de mortes de civis foi registrado em ambos os lados (Vietnã do Sul e Vietnã do Norte). Além disso, 1,1 milhão de combatentes norte-vietnamitas morreram.
Do lado dos Estados Unidos, o exército estima que entre 200 e 250 mil soldados sul-vietnamitas e 58 mil norte-americanos morreram em combate.
A lista de perdas inclui ainda outros países que lutaram pelo Vietnã do Sul: 4 mil soldados sul-coreanos, mais de 500 soldados da Austrália, cerca de 350 da Tailândia e 36 soldados da Nova Zelândia.
O Camboja, que mesmo sendo uma uma monarquia entreguista que não apoiava o socialismo vietnamita durante a Guerra do Vietnã, foi alvo de mais de 540 mil toneladas de bombas. Entre 1969 e 1973, Kissinger autorizou o equivalente a 36 bombas de Nagasaki no território do país do sudeste asiático.
Kissinger também está por trás da sangrenta invasão pela Indonésia do Timor Leste, em dezembro de 1975. À época o diplomata era o secretário de Estado de Gerald Ford. Cerca de 200 mil timorenses morreram durante os vinte e cinco anos de ocupação.
Aqui na América Latina, Kissinger ajudou a arquitetar golpes de Estado contra governos democraticamente eleitos. No Chile, deu sinal verde para o assassinato de Salvador Allende e apoiou o sanguinário general Augusto Pinochet.
O diplomata estadunidense também apoiou a repressão das ditaduras militares do Brasil e da Argentina. Aliás, já fora do posto em Washington, desembarcou em Buenos Aires para assistir à Copa do Mundo de 1978 durante o governo ditatorial e violento do general Jorge Videla.
As efusivas e exageradas homenagens de Pequim a um dos principais artífices da prática de “guerra, colonização e saqueio” durante o século XX é uma flagrante contradição chinesa. Nós, do Sul Global, jamais esqueceremos o outro lado de Kissinger.