A oncologista e imunologista Nise Yamaguchi deu ao menos oito declarações contraditórias em seu depoimento à CPI da Covid, no Senado, nesta terça-feira. As contradições da médica defensora da cloroquina, cuja eficácia não é comprovada para o tratamento da Covid-19, vão desde as dosagens do medicamento à vacinação para pessoas em grupos de risco e encontros que teve com o presidente Jair Bolsonaro. Yamaguchi também divergiu dos depoimentos do ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, sobre a minuta para mudar a bula da cloroquina.
Doença autoimune e vacinação
Ao ser questionada pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) se a médica já teria sido vacinada contra o novo coronavírus, Yamaguchi respondeu que não poderia ser imunizada por ter uma doença autoimune.
— Eu não posso me vacinar, porque tenho uma doença autoimune — disse a médica, que depois afirmou: — Existem pessoas que não podem se vacinar, principalmente aquelas que têm vasculites, como é o meu caso, eu tenho uma síndrome de Raynaud. Outras pessoas que têm doenças maiores, hepáticas ou renais que sejam situações graves.
Ao vivo:Nise Yamaguchi nega à CPI participação em encontros privados com Bolsonaro, mas defende tratamento precoce para tratar Covid
No entanto, a Sociedade Brasileira de Reumatologia já explicou que pacientes com doenças autoimunes reumatológicas, como é o caso de Yamaguchi, fazem parte do grupo prioritário para a vacinação contra a Covid-19.
A Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm) também afirmou que pessoas com doenças autoimunes devem receber a vacina contra a Covid.
Dosagem alta de cloroquina
Durante a sessão desta terça-feira, Nisa Yamaguchi citou um estudo feito em Manaus para analisar o impacto de diferentes dosagens da cloroquina em pacientes com a Covid-19.
— Eu conversei com os técnicos sobre dosagens da cloroquina, que não poderiam ser muito altas, porque havia saído recentemente um artigo com as doses tóxicas utilizadas num estudo de Manaus. Eu tomei o cuidado, então, de esclarecer que as doses deveriam ser mais baixas — afirmou a médica.
A pesquisa, feita em março do ano passado, foi suspensa após a morte de 22 pacientes analisados. No entanto, conforme o próprio estudo concluiu, nenhuma morte estava ligada diretamente ao uso da droga. Além disso, os óbitos também não foram exclusivos àqueles que tomaram a maior dosagem do remédio — 16 morreram enquanto estava no regime de alta dose, enquanto seis morreram tomando a dosagem mais baixa.
Mudança na bula
Yamaguchi afirmou que não discutiu a mudança na bula da cloroquina para indicar que o medicamento poderia ser usado para tratar a Covid-19. A fala contradisse o depoimento do ex-ministro Mandetta e do presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres.
A declaração da médica foi uma resposta ao relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), que questionou se em uma reunião em abril do ano passado foi discutida a alteração da bula
— Não. Inclusive, depois da reunião, eu descobri que eles estavam se referindo a uma minuta, e essa minuta jamais falava de bula, ela falava sobre a possibilidade de haver uma disponibilização de medicamento — afirmou.
Tanto Mandetta quanto Barra Torres afirmaram na CPI que, na reunião, foi falado sobre a possibilidade de mudar a indicação para o uso da cloroquina. Com a afirmação de Yamaguchi, o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), disse que poderia fazer uma acareação com a médica e o presidente da Anvisa sobre o caso.
Encontros com o presidente
A médica oncologista afirmou que nunca teve um encontro privado com Bolsonaro. No entanto, de acordo com agenda oficial de Bolsonaro, os dois tiveram uma reunião a sós no dia 15 de maio do ano passado. Além disso, há também o registro de ao menos outras três reuniões entre Bolsonaro e Yamaguchi com a presença de demais pessoas.
Confira as datas que o presidente se reuniu com a médica:
6 de abril de 2020 — Além de Nise Yamaguchi, estavam o anestesista Luciano Dias Azevedo e o deputados Osmar Terra. Havia a presença de alguns ministros, mas não de Luiz Henrique Mandetta, à época no comando da Saúde.
15 de maio de 2020 — Nise Yamaguchi em reunião a sós com Bolsonaro
21 de maio de 2020 — Nise Yamaguchi, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde Elcio Franco, ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, e ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella.
8 de setembro de 2020 – Nise Yamaguchi e integrantes do grupo “Médicos pela Vida”, que defende o uso de remédios sem eficácia comprovada contra a Covid-19
Sondada para Ministério da Saúde
Questionada por Renan Calheiros se foi convidada por Bolsonaro para ser ministra da Saúde ou integrar o gabinete de crise, Yamaguchi negou. A médica repetiu que não foi chamada para chefiar a pasta em diversos momentos da CPI.
— Reitero que o presidente nunca me convidou para ser Ministra da Saúde — enfatizou.
No entanto, em entrevista à Veja em julho do ano passado, a médica falou sobre a possibilidade assumir o ministério. Yamaguchi foi cotada para o cargo logo após a saída de Nelson Teich da pasta.
— Ele não precisa me sondar, ele já me conhece. A gente conversa direto. O bom para mim é que eu já passei pelos escrutínios. Porque falavam que eu era do PT, que eu era melancia, vermelha por dentro, verde por fora. Se eu tiver que ir por ministério, eu abro mão do salário, fico de segunda a sexta. Entro de férias sexta à noite e volto segunda de manhã — disse a médica na entrevista gravada em vídeo.
Eficácia do lockdown em Nova York
À comissão, Yamaguchi afirmou que o governador de Nova York, Andrew Cuomo, havia apresentado um estudo que mostrava a ineficácia do lockdown para conter o contágio do novo coronavírus.
— Esse dado foi dado pelo governador de Nova York. Eles fizeram um estudo mostrando que os pacientes vinham de casa e que o lockdown somente não resolveria o problema — disse.
A fala faz referência a um levantamento feito no estado americano, que indicou que 66% dos novos pacientes em Nova York eram pessoas que estavam isoladas em casa. No entanto, diferentemente do que disse Yamaguchi, Cuomo afirmou que o contágio aconteceu justamente porque havia pessoas que não respeitavam o isolamento social e, por isso, levavam o vírus para casa. Ele disse ainda que a medida de restrição funcionava bem.
OMS sobre lockdown
Ainda sobre o lockdown, medida restritiva mais rígida para que a população fique em casa e só saia em casos essenciais, Yamaguchi afirmou que a Organização Mundial de Saúde (OMS) não tinha uma orientação definida para a restrição em junho do ano passado.
— A própria Organização Mundial da Saúde não sabia se deveria fazer lockdowns absolutos, lockdowns horizontais — afirmou.
A entidade internacional, no entanto, já falava sobre lockdown naquela — a medida havia sido adotada por alguns países da Europa, o então epicentro da doença no mundo. A OMS também orienta, em suas diretrizes sobre a pandemia, que a “medidas de distanciamento físico em grande escala e restrições de movimento, muitas vezes referidas como “lockdowns”, podem retardar a transmissão da Covid-19, limitando o contato entre as pessoas”.
Estudo da Henry Ford Foundation
Ao longo da sessão desta terça-feira, Nise Yamaguchi, defendeu a eficácia da cloroquina no tratamento para a Covid-19. Em um desses momentos, citou um estudo feito pela Henry Ford Foundation.
— Então, a gente tem realmente uma eficácia comprovada, através da Henry Ford Foundation
O estudo em questão, feito entre março e maio do ano passado, afirma que a taxa de mortalidade entre os pacientes analisados poderia estar associada ao tratamento com a hidroxicloroquina, seja sozinha ou associada à azitromicina. No entanto, a própria pesquisa afirmava em sua conclusão que eram necessários mais estudos para comprovar o impacto e eficácia dos medicamentos.
Além disso, uma metanálise publicada pela revista britânica “Nature”, em abril deste ano, concluiu que não há eficácia no uso da cloroquina e, no caso da hidroxicloroquina, há uma relação do uso da droga com o aumento na mortalidade de pacientes com a Covid-19. Essa pesquisa foi assinada por 94 cientistas e analisou colaborativamente 28 ensaios clínicos publicados ou não, nos quais participaram 10.319 pacientes.
A pesquisa da Henry Ford também é um estudo retrospectivo, isto é, feito através de análises de dados anteriores. No caso dessa pesquisa, foi analisado o prontuário dos pacientes que tomaram os medicamentos. Já a metanálise publicada na “Nature” é uma análise de um conjunto de estudos prospectivo randomizados, isto é, que acompanharam os pacientes ao longo do tempo da pesquisa e que, além disso, a escolha daqueles que tomariam a cloroquina foi feita de forma aleatória — o que diminui as chances de interferência de outros fatores no resultado.
A metanálise, por ser uma análise de um conjunto de estudos, tem uma precisão estatística maior por incluir mais pacientes do que cada estudo individualmente.
O mesmo estudo foi citado de forma enganosa pela secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como “Capitã Cloroquina”, em seu depoimento à CPI.