Recém-publicado na revista Nature, um artigo de economia revelou como o Norte Global usa da desigualdade salarial com os países do Sul para se apropriar da riqueza produzida por eles. “Embora os trabalhadores do Sul contribuam com 90% da mão de obra que impulsiona a economia mundial, eles recebem apenas 21% da renda global”, afirma o texto.
Essa estrutura exploratória remonta, apontam economistas ouvidos pela Sputnik Brasil, à gênese do sistema capitalista.
O artigo da Nature, “Unequal exchange of labour in the world economy” (Troca desigual de trabalho na economia mundial, em tradução livre), aborda como os salários dos trabalhadores do Sul Global são menores do que trabalhadores da mesma qualificação de nações desenvolvidas.
“Os salários do Sul são 87–95% menores do que os salários do Norte.”
Essa diferença salarial, convertida em valores do Norte, é também traduzida em horas de trabalho. Em 2021, por exemplo, 9,6 trilhões de horas de trabalho foram destinadas à produção para a economia global. “Desse total, 90% foram contribuídos pelo Sul”, alerta o artigo científico.
Dessa forma, argumentam os autores do trabalho, há uma “grande apropriação líquida de trabalho e recursos do resto do mundo por meio de trocas desiguais no comércio internacional e nas cadeias globais de commodities.”
“Desde que há capitalismo essa relação de exploração foi necessária”, afirma à Sputnik Brasil a professora da Faculdade de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Juliane Furno, autora do livro “Imperialismo: uma introdução econômica”.
No passado, essa exploração ocorreu a partir da “apropriação de recursos naturais e matérias-primas essenciais ao processo de industrialização, até o acúmulo de capital monetário proveniente do tráfico de escravizados“, lembra a economista, sendo realizado de forma “primitiva” por meio de pilhagem, roubo, expropriação, ocupações territoriais, coloniais e guerras.
“Atualmente, os sistemas de exploração estão mais condizentes com a lógica do capitalismo maduro e conta com instrumentos próprios de mercado.”
De fato, afirma o artigo, essa supressão de salários no Sul Global ocorre através de pressões políticas do autodenominado Norte, por meio dos programas de ajustes estruturais (SAP, na sigla em inglês), conjunto de medidas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial.
Entre as medidas estão a “desvalorização das moedas”, a “remoção de proteções trabalhistas e ambientais” e o “corte do empregos públicos. Isso faz com que a produtividade do Sul Global seja barateada em relação aos países desenvolvidos”.
“Também são restringidas políticas industriais e investimentos liderados pelo Estado no desenvolvimento tecnológico”, diagnostica o artigo científico. Isso faz com que os governos de países em desenvolvimentos priorizem a “produção orientada para a exportação” em setores competitivos e adotem posições “subordinadas” dentro das cadeias globais de commodities.
Essa situação é exemplificada por Furno na produção de um iPhone: “Seu valor está marcado pelo trabalho extraído pela periferia capitalista, que, em função dos baixos salários, são atrativos para os donos desses empreendimentos. No entanto, os lucros são realizados no Norte Global.”
“Há uma transferência de trabalho e uma superexploração […] dos trabalhadores do Sul Global, que é apropriado pelos donos do capital, que são do Norte Global, onde estão concentradas as partes nobres da operação — em geral, o marketing e o incremento tecnológico.”
O economista Pedro Faria ressaltou que, nessa lógica econômica, há aqueles no Sul Global que se beneficiam desse modelo imperialista, “que ganham muito mantendo a economia do país em uma posição subordinada”.
“Temos que lembrar que nos países que são explorados tem elites. Antigamente eram elites coloniais, e hoje são elites que se subordinam ao processo de acumulação dos países capitalistas centrais”, detalha Faria.
“Então não é um processo em que todo mundo no Brasil perde. Algumas elites ganham com esse processo de subordinação.”
Havia uma elite no país, principalmente entre os anos 1930 e 1980 do século passado, mais alinhada com projetos de desenvolvimento industrial nacional. “Hoje essa elite está desaparecendo e estamos assistindo a uma dominância quase completa no campo econômico da elite que ganha se subordinando aos processos do Norte Global.”
China e o multilateralismo: um novo tipo de relação
Dentro dessa lógica econômica, a China surge como grande consumidora de commodities de países em desenvolvimento, enquanto também é uma grande nação emergente na produção tecnológica própria.
“Mas a China não tem política imperial”, distingue o economista.
Pelo contrário, a nação asiática possui uma disposição multilateralista que busca desenvolver as nações com quem mantém relações comerciais, “ao contrário dos países do Norte Global”.
Isso pode ser observado na África, onde os chineses vêm realizando inúmeros projetos de infraestrutura.
“A China parece ter uma disposição muito grande de estabelecer relacionamentos que não são unilaterais, como foram os relacionamentos coloniais e pós-coloniais do século passado”, afirma Faria.
Claro que há ganhos para os chineses, “que também não fazem caridade”, mas é outro tipo de relação que não a relação imperialista que predominou no século XIX e XX.
Pelo que apontam os economistas, esse multilateralismo que surge com a ascensão chinesa se revela o caminho mais seguro para alterar a lógica exploratória instituída pelo Ocidente.
“Um maior equilíbrio de forças na geopolítica mundial pode impor um ajuste nesse padrão de drenagem do excedente das riquezas dos países do Sul pelo Norte”, crava Furno.