Ainda está acontecendo o maior evento legislativo chinês, as chamadas “duas sessões”. Tratam-se da sessão do principal corpo legislativo do país (a Assembleia Popular Nacional, APN), que conta com 2977 delegados, e do outro braço, o consultivo, com a presença dos 2169 membros da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. O sistema político e representativo chinês se diferencia de sua contraparte ocidental por seu caráter tanto legislativo quanto consultivo. As “duas sessões” iniciaram-se no último 4 de março e se encerrarão no próximo dia 11.
Um chamado “sistema de democracia integral” tem se desenvolvimento com o intuito de ampliar tanto a participação direta das bases da sociedade chinesa no processo de eleições em níveis de aldeias, vilas, distritos e bairros quanto o já consagrado antes da Revolução de 1949 sistema de consultas com personalidades, sem direito a deliberação, de todo o país, que se reúnem nos chamados conselhos consultivos, organizados de “baixo para cima”. Este sistema baseado em “assembleias populares” distingue-se por pelos menos dois atributos: a ausência do poder do dinheiro como forma de promover eleições de representantes de uma única classe ou interesse e o fato de os deputados da APN ficarem somente uma semana em Pequim, enquanto fixam-se em suas bases no restante do ano. Isso favorece o desenvolvimento de laços com as bases e menor pressão por grupos de interesse instalados em cidades como Pequim ou Xangai.

O encontro de 2025 tem sido acompanhado com muita atenção pelo mundo. Não somente pelo fato de a China ter se tornado a maior economia produtiva do planeta, produzindo 31% do que o mundo consome. O fato é que o ano de 2024 foi fechado com a marca de 14 pacotes fiscais, que encetaram o objetivo de 5% de crescimento para o referido ano. Hoje, o anúncio de um déficit fiscal de 4% orienta de novo o esforço do país em alcançar, novamente, 5% de crescimento do PIB para 2025. Alcançar esta meta pode ajudar a estabilizar as estruturas de oferta e demanda de todos os países do mundo em um momento em que a ameaça de um hiper protecionismo nos EUA eleva a possibilidade de esgarçamento das cadeias globais de valor com efeitos sobre a inflação e a taxa de juros no mundo ainda a serem aferidas.
Internamente, os chineses buscam manter a geração de 12 milhões de empregos urbanos, algo que tem se repetido ao longo, pelo menos, da última década. A taxa de desemprego não deverá ultrapassar 5,5% e a luta por alcançar a soberania alimentar passa por manter a colheita de 700 milhões de toneladas de cereais. Não se tratam de metas irrealistas – ao contrário. O que devemos observar e estudar são os meandros por trás da realização de cada objetivo. Por exemplo, o esforço pela autossuficiência tecnológica, a construção de mais linhas ferroviárias de alta velocidade e a promoção de uma urbanização não mais baseadas somente em grandes empreendimentos e sim em eficientes serviços públicos. Recentemente um trem que pode alcançar 450 km/h foi testado com sucesso no país, significando que a China (via políticas regionais ativas) continua a inaugurar esquemas superiores de divisão social do trabalho funcionais a políticas como o da erradicação da pobreza extrema. Em 21 de janeiro, um sol artificial fabricado na China alcançou um marco histórico ao manter uma operação de plasma em confinamento de alta eficiência por 1.066 segundos. Este feito bateu o recorde mundial anterior, representando um avanço crucial na obtenção de energia limpa por meio da fusão nuclear.
A China tem sido um território muito fértil de experimentação em vários campos da vida em sociedade, seja na política ou – de forma contínua – em sua dinâmica interna de acumulação. Como se trata de um país onde uma pujante classe operária urbana emerge das ondas anuais de migração do campo à cidade, a questão das demandas sociais e políticas destes novos grupos ganha muita força de pressão sobre a governança do país – mantendo vivo um sistema político ainda muito novo em relação à democracia liberal.
Da mesma forma que os desafios externos e internos ao desenvolvimento chinês, cada vez mais sob a lupa ocidente, obrigam o país a um caminho forçoso para frente, levando ao surgimento de novas dinâmicas de acumulação onde planejamento vai deixando de ser guia às empresas nacionais operando em um ambiente de mercado rumo a uma planificação baseada em grandes projetos. Ou seja, uma realidade onde cada projeto elaborado e executado torna-se sinônimo de uma “economia de projetamento” onde a razão passa a ser instrumento mediador nas relações entre custo e benefício em cada projeto.
As “duas sessões” nos deixam a marca de um país cada vez mais imparável, orientado ao futuro por pura força das circunstâncias. Circunstâncias que também obrigam o país a inaugurar, reinaugurar e fazer desaparecer instituições. Sob os auspícios da grande propriedade pública na produção e na finança, a China continua a se constituir em um interessante caso não de “Estado Desenvolvimetista”, mas de sua superação sob a forma de um Communist Party-Led Development (Desenvolvimento Liderado pelo Partido Comunista).
Elias Jabbour é professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. Foi Consultor-Sênior do Novo Banco de Desenvolvimento (Banco dos BRICS) e é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos. É autor, com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo, 2021). Vencedor do Special Book Award of China 2022.