As eleições presidenciais e para a Assembleia Legislativa na República da China (ROC), nome oficial de Taiwan, realizadas no último sábado (13), confirmaram as pesquisas de opinião: uma vitória da situação na Presidência, no caso o Partido Democrático Progressista (DPP), encabeçado pelo atual vice-presidente Lai Cing-te, e ao mesmo tempo outra vitória para a oposição no Legislativo, onde o partido nacionalista Kuomintang (KMT) elegeu a maior bancada, aumentando-a dos atuais 38 para 52 deputados.
Sem um segundo turno, Lai-Cing-te ganhou a Presidência com somente 40% dos votos válidos, aproveitando o fato de que parte da oposição optou por organizar uma terceira via, o Partido do Povo de Taiwan (TPP). A abstenção aumentou marginalmente e ficou em 28%.
Taiwan ganhou uma visibilidade na política internacional com a Revolução Chinesa de 1949, quando Chiang Kai-shek junto com cerca de dois milhões de seguidores resolveram se retirar para essa província supostamente esperando o momento certo para retomar o continente. A partir da Guerra da Coreia (1950-1953), foi um dos pontos de tensão na Guerra Fria até a normalização das relações entre a República Popular Chinesa (RPC) e os EUA, no início da década de 1970. Com a retomada das tensões entre as duas nações na década de 2010, Taiwan voltou ao centro das atenções, em um contexto que alguns consideram uma nova Guerra Fria.
A revista britânica The Economist publicou, em capa de uma edição do início de maio de 2021, que a ilha taiwanesa seria o lugar mais perigoso para se viver. É conhecido o desejo declarado da China de incorporar Taiwan à sua jurisdição, em um processo considerado de reunificação. Para o Partido Comunista da China, essa reunificação é inevitável e está ligada à meta de completar seu processo de rejuvenescimento projetado para 2049, ano do centenário da Revolução.
Por enquanto, Pequim defende que a base da relação deve ser um reconhecimento do chamado Consenso de 1992, um acordo informal entre o Partido Comunista chinês (PCC) e o KMT que estabelece que: a) existe uma só China; b) que Taiwan é parte dela; e c) que as partes concordam em discordar de quem é a representação legitima do país.
Por outro lado, há uma resistência a este processo, pelo menos por parte da população de Taiwan, sobretudo o eleitorado jovem, que desenvolveu uma percepção de viver em uma realidade com características e uma razão de ser próprias. Desde a década de 1990, estabeleceu-se de forma crescente entre China e Taiwan relações comerciais, integração das cadeias de produção com volumosos investimentos taiwaneses no continente e até um fluxo intenso de pessoas (empresários, turistas e estudantes).
Paradoxalmente, foi justamente ao longo desse período que as forças centrífugas ganharam maior peso político em Taiwan, com o fortalecimento de uma identidade própria.
Com isso, o conflito ideológico da época da Guerra Fria entre o Partido Comunista Chinês (PCC) e o Partido Nacionalista (Kuomintang) foi substituído por um conflito entre duas visões a respeito da identidade de Taiwan: parte integral indivisível da China, com um destino compartilhado com o continente cuja visão é compartilhada entre o PCC e o KMT, ou uma nação em construção com sua própria história e destino, visão do campo nacionalista taiwanês liderado pelo Partido Democrático Progressista (DPP).
Com as crescentes tensões entre os EUA e a China e a guerra na Ucrânia, as eleições em Taiwan ganharam uma atenção internacional muito grande, como se o povo escolhesse entre uma aliança com os EUA rumo a sua independência ou se preparasse para uma reunificação com a China continental. Na verdade, a grande maioria da população de 24 milhões de pessoas – jovem, “povão” ou elite – prefere uma continuação do status-quo: autonomia política de fato e bons negócios com a China.
Lembrando que a China é de longe o maior parceiro comercial da ilha, com um corrente de comércio em torno de US$ 200 bilhões e um superávit de US$ 37 bilhões em 2022, além de ser o maior destino de voluminosos investimentos produtivos. Isso vale também para os três partidos que apresentaram candidatos à Presidência. A grande diferença diz respeito a forma como garanti-lo, afinal todos sabem que Taiwan nunca foi, não é, e nunca será um país independente. O que está em jogo não é só uma complexa e delicada relação com Pequim, mas também o grau de interação com os EUA e, menos conhecido, com o Japão, da qual foi colônia de 1895 até 1945.
Além disso, muitos eleitores votaram pensando em questões locais: inflação, emprego para jovens, moradia, migração, energia (nuclear, por exemplo). A derrota do DPP nas eleições municipais em 2022 tinha muito mais a ver com erros na política durante a pandemia da covid-19 do que com a política com relação a China. Sem dúvida a questão geopolítica se confunde facilmente com o debate sobre as políticas locais. Exemplo claro é a indústria de semicondutores, cujo complexo representa cerca de 13% do PIB. Lançando mão de políticas industriais consistentes e aproveitando as oportunidades, Taiwan se colocou como um dos centros da complexa cadeia produtiva internacional, especializando-se na tecnologia de processo.
A Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) sozinha é responsável pela produção de mais de 50% dos microprocessadores do mundo. A China continental é um mercado importante e também destino de investimentos, por exemplo, com uma fábrica em Nanjing. Parte central da política dos EUA de tentar conter a ascensão da China consiste em limitar seu acesso à tecnologia avançada e, ao mesmo tempo, investir em aumentar essa capacidade nos EUA. Na prática, isso envolve “convidar” a TSMC a montar uma fábrica avançada nos EUA, no caso no Estado do Arizona e, ao mesmo tempo, envolver a TSMC nas sanções tecnológicas contra China. É difícil ver isso como interessante para Taiwan ou para suas empresas. Outro exemplo é a discussão sobre o serviço militar obrigatório para jovens masculinos, que recentemente foi aumentado de quatro meses para um ano, algo que, aliás, contou com o apoio dos três principais partidos da Ilha, embora não muito popular entre os próprios jovens.
Grande parte da imprensa internacional especula sobre a reação de Pequim após a vitória de Lai Ching-te para avaliar o grau de tensão que se pode esperar, embora a grande maioria entenda que um conflito militar está longe de ser de interesse da China no momento. Na verdade o grau de conflitividade vai depender muito mais da política dos EUA e seus aliados. Os EUA não mantêm relações diplomáticas e, logo, nenhum tratado com Taiwan ou presença de tropas na ilha. No entanto, está em vigor desde 1979 o Taiwan Relations Act, uma lei nacional que obriga os governos estadunidense a dar o apoio necessário para Taiwan se defender, uma contradição conhecida como “ambiguidade estratégica”.
Desde a normalização das relações negociada por Nixon e Kissinger com Mao e Zhu Enlai no início da década de 1970, passando pelos comunicados de Ronald Reagan no início da década de 1980, há uma série de regras informais no jogo. Por exemplo, no que diz respeito ao volume de vendas de armas para Taiwan, ao tipo de visita de autoridades estadunidenses para a Ilha, ou ao tipo de projeção de força militar em torno da região. Embora tenham ocorrido atritos em vários momentos nas últimas décadas, a coisa desandou bastante com as voluminosas vendas de armas no governo Trump e visitas à ilha de autoridades de cada vez maior escalão.
Essas provocações certamente não são de interesse de Taiwan e continuaram no governo de Joe Biden. Um caso emblemático foi a desastrosa visita de Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos Deputados, em agosto de 2022. Os EUA sabem que nenhuma liderança chinesa pode aceitar uma provocação dessa sem dar uma resposta contundente com o risco de ver sua legitimidade sendo questionada perante seu povo. À época, Pequim congelou o diálogo de coordenação de política defesa EUA-China. Não à toa, a retomada desse diálogo ocorreu na semana passada, em Washington, na véspera das eleições em Taiwan.
Sem dúvida, para uma política agressiva por parte dos EUA, um governo do DPP em Taipé é visto como uma oportunidade, pode dar a falsa ilusão a respeito da margem de atuação de Taiwan e diminuir o incentivo para manter um diálogo construtivo com a China. Nesse aspecto, uma possível vitoria de Donald Trump nas eleições em novembro pode agravar a situação, já que a política durante seu governo coincidiu com o primeiro governo e a reeleição da Tsai Ing-wen. Por enquanto, chama a atenção as declarações de Lai Ching-te a respeito de abertura para um diálogo para substituir confrontação com Pequim. Oxalá seja esse o espírito.
*Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.