Esta é a principal mensagem de um relatório publicado ontem (10/06) em Bonn, na Alemanha, elaborado por 50 cientistas de todas as regiões do mundo, ligados à Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) e ao Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Entre os autores da publicação estão os brasileiros Maria de Los Angeles Gasalla, professora do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP); Aliny Patrícia Flausino Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bernardo Strassburg, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Adalberto Luís Val, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
“O relatório aponta que o clima e a biodiversidade se reforçam e, portanto, devem ser vistos como um todo. Para que qualquer uma dessas questões seja resolvida de forma satisfatória deve-se levar em conta a outra”, diz Gasalla à Agência FAPESP.
A publicação é resultado de um workshop virtual, realizado em dezembro de 2020, com a participação dos 50 cientistas selecionados por um comitê científico criado pela IPBES e o IPCC. A elaboração do documento não teve a participação de governos na indicação dos participantes e na revisão do conteúdo e não houve a negociação entre eles, como normalmente ocorre nas avaliações feitas pelos dois órgãos intergovernamentais.
A cientista brasileira Thelma Krug, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e vice-presidente do IPCC, participou como observadora do encontro.
“O relatório incluiu, além dos aspectos procedimentais, uma síntese das discussões científicas que ocorreram durante os quatro dias de duração do workshop. É a primeira iniciativa conjunta entre o IPCC e a IPBES e buscou identificar as sinergias e os potenciais pontos negativos entre a proteção da biodiversidade e a mitigação e adaptação à mudança do clima”, diz Krug.
Uma das conclusões dos cientistas é que as mudanças sem precedentes no clima e na biodiversidade têm se combinado e aumentado as ameaças à natureza, à vida, aos meios de subsistência e ao bem-estar da população mundial. Ambas são produzidas pelas atividades humanas e se reforçam mutuamente. Desse modo, a única forma de detê-las é por meio de uma abordagem conjunta.
“As mudanças climáticas causadas pelo homem estão cada vez mais ameaçando a natureza e suas contribuições para as pessoas, incluindo a capacidade de ajudar a mitigar o aquecimento global. Com um mundo mais quente serão obtidos menos alimento, água potável e outras contribuições importantes que a natureza pode dar para as pessoas em muitas regiões do planeta”, afirma Hans Otto Pörtner, copresidente do comitê científico.
As alterações na biodiversidade, como a perda de espécies, por sua vez, afetam o clima, especialmente em razão de seus impactos nos ciclos de nitrogênio, carbono e água, sublinhou o pesquisador.
“A evidência é clara: um futuro global sustentável para as pessoas e a natureza ainda é alcançável, mas isso requer uma mudança transformadora, com ações rápidas e amplas nunca antes tentadas, com base em reduções de emissões de CO2 ambiciosas”, aponta Pörtner.
O relatório indica que as políticas têm abordado a perda de biodiversidade e as mudanças do clima independentemente uma da outra, e que endereçar as sinergias entre mitigação da perda de biodiversidade e das mudanças climáticas, ao mesmo tempo considerando seus impactos, oferece a oportunidade de maximizar os benefícios e atender às metas de desenvolvimento global.
Os autores também apontam que ações estritamente focadas no combate às mudanças climáticas podem direta ou indiretamente causar prejuízos à natureza e que existem muitas medidas capazes de dar contribuições significativas em ambas as áreas.
“É importante considerar que para promover a implementação das NDCs [contribuições nacionalmente determinadas de redução de emissões de gases de efeito estufa, estabelecidas pelos países signatários do Acordo de Paris] e o desenvolvimento de planos nacionais de adaptação, há medidas disponíveis para diversos setores, como silvicultura, agricultura, pesca, aquicultura, sistemas aquáticos e dulcícolas, entre diversos outros”, afirma Gasalla.
“Mas é importante que os mecanismos de adaptação sejam baseados no contexto específico dos países e que a adaptação seja vista como um processo contínuo e interativo”, pondera.
Entre as ações mais importantes e acessíveis indicadas pelos pesquisadores estão deter a perda e a degradação de carbono e de ecossistemas ricos em espécies na terra e no oceano, especialmente em florestas, pântanos, turfeiras, pastagens e savanas, além de ecossistemas costeiros, como manguezais, pântanos salgados, florestas de algas e prados de ervas marinhas, bem como hábitats em águas profundas.
“Os ecossistemas marinhos apresentam desafios específicos para a adaptação aos impactos das mudanças climáticas. A rápida mudança na distribuição das espécies desafia a delimitação de áreas de proteção marinha estáticas e delimitadas anteriormente às alterações em curso”, explica Gasalla.
O relatório destaca que a redução do desmatamento e da degradação florestal pode contribuir para diminuir entre 0,4 e 5,8 gigatoneladas por ano as emissões de dióxido de carbono por atividades humanas.
Outra medida urgente apontada é restaurar o carbono e ecossistemas ricos em espécies. Os autores alertam para a evidência de que a restauração está entre as mais baratas e rápidas medidas de mitigação a serem implementadas e que podem proporcionar muito hábitat necessário para plantas e animais, além de aumentar a resiliência da biodiversidade em face da mudança do clima, entre muitos outros benefícios, como regulação de inundações, proteção costeira, melhoria da qualidade da água, redução da erosão do solo e garantia da polinização.
A restauração do ecossistema também pode criar empregos e renda, especialmente se forem levados em consideração as necessidades e os direitos de acesso dos povos indígenas e comunidades locais.
“A mudança do clima atual já está impactando alguns ecossistemas, limitando a implementação de abordagens baseadas na eliminação da degradação e na restauração deles não só para adaptação, como também para mitigação da mudança climática”, afirma Krug.
Além da restauração, os pesquisadores destacam a necessidade de aprimorar e melhorar ações voltadas à conservação, incluindo não só as áreas protegidas como também corredores de migração e eliminar subsídios que apoiem em escalas local e nacional atividades prejudiciais à biodiversidade, como o desmatamento.
Os autores do relatório enfatizam que, embora a natureza ofereça caminhos para ajudar a mitigar a mudança climática, essas soluções só podem ser eficazes se forem construídas com reduções ambiciosas de emissões de gases de efeito estufa.
“A Terra e o oceano já estão fazendo muito, absorvendo quase 50% de CO2 a partir de emissões humanas, mas a natureza não pode fazer tudo”, disse Ana María Hernández Salgar, presidente do IPBES.
“Mudanças transformativas em todas as partes da sociedade e nossa economia são necessárias para estabilizar nosso clima, parar frear a perda de biodiversidade e traçar um caminho para o futuro sustentável que desejamos. Isso também exigirá que abordemos ambas as crises em conjunto, de formas complementares”, avalia Salgar.
Necessidade de agenda comum
O relatório representa um avanço na integração científica entre as áreas de biodiversidade e mudanças climáticas.
A comunidade de pesquisa dedicada a investigar o sistema climático é um pouco distinta da que estuda a biodiversidade e cada uma delas tem sua própria convenção internacional e órgão intergovernamental que avalia o conhecimento disponível na área – a IPBES para biodiversidade e o IPCC para mudanças climáticas.
Essa separação funcional cria um risco para identificar, compreender e lidar com as conexões entre as duas áreas e, na pior das hipóteses, pode levar à tomada de ações que inadvertidamente evitam a solução de um ou de outro ou de ambos os problemas, avaliam os pesquisadores das duas áreas.
“A comunidade científica vem fazendo pressão, há bastante tempo, para que a biodiversidade e o clima sejam discutidos conjuntamente, mas, infelizmente, há países, como o Brasil, que são muito reticentes em reunir essas duas agendas sob o pretexto de que as discussões e resoluções que envolvam essas duas áreas críticas acabem sendo utilizadas para criação de barreiras para a exportação de produtos agropecuários pelo país”, explica Carlos Joly, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da coordenação do Programa BIOTA-FAPESP, que participou como revisor do relatório.
A integração dessas duas agendas, contudo, é especialmente interessante para o Brasil, uma vez que o cumprimento da NDC brasileira está baseado no compromisso de restaurar, até 2030, 15 milhões de hectares de áreas de pastagem degradadas, aponta o pesquisador.
“Isso é de alto interesse para a biodiversidade também, especialmente se essa restauração for feita em São Paulo e Minas Gerais por meio da reconexão de áreas florestais altamente fragmentadas e conforme as exigências do Código Florestal”, ressalta Joly.
“Dessa forma, o país não só cumpriria sua meta de diminuição de emissões de gases de efeito estufa como também avançaria na definição de sua meta de restauração que vai ser estabelecida na COP-15 [15ª Conferência das Partes da Convenção sobre a Diversidade Biológica, prevista para acontecer em outubro na cidade de Kunming, na China]”, afirma.
A expectativa é que o relatório repercuta não só nas negociações entre os países na COP-15 da Biodiversidade como também na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-26), prevista para acontecer em novembro, em Glasgow, na Escócia.