Brasil e China: há 50 anos construindo uma nova ordem global

Por Marcos Cordeiro Pires – Professor de economia política na Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Marília (SP)

(Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Neste ano, comemoramos cinquentenário do estabelecimento de relações diplomáticas em o Brasil e a República Popular da China. Em 1974, parecia difícil imaginar que uma ditadura de direita anticomunista pudesse se relacionar com o governo popular dirigido pelo Partido Comunista Chinês. Além disso, havia uma enorme distância geográfica e linguística que dificultava o entendimento mútuo entre os povos do maior país em desenvolvimento do Oriente e o maior país em desenvolvimento no hemisfério Ocidental. Entretanto, contra os prognósticos pessimistas e pressões internacionais, a parceria sino-brasileira seguiu seu rumo e deu inúmeros frutos, desde o comércio e os investimentos, passando pela cooperação tecnológica e científica, até o aprofundamento dos laços culturais entre os dois povos, para o qual uma rede de Institutos Confúcio assume um papel relevante.

Uma lição importante que se pode aprender da relação entre o Brasil e a China é que a diferença de cultura e de sistema político não é um empecilho para a cooperação, pois não existem pressões de lado a lado para modificar a essência do modo de vida de cada parceiro. Não há uma hierarquia de valores e tampouco o racismo que ainda caracteriza as relações internacionais. No que tange as relações internacionais do Brasil, a Constituição de 1988 estipula os seguintes princípios: a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, o terrorismo e ao racismo e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Essas diretrizes são similares aos pilares da política externa da China desde a década de 1950, “Os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”, que pressupõem o respeito mútuo pela integridade e soberania territorial uns dos outros, a não agressão mútua, a não interferência mútua nos assuntos internos uns dos outros, a igualdade e benefício mútuo, e a coexistência pacífica.

Nesse sentido, é importante destacar que Brasil e China não consideram que seus valores universais e tampouco que se sobrepõem à organização social, cultural e política de outros países. Não atuam em nível internacional de forma proselitista ou intentam moldar outras nações de acordo com suas próprias visões de mundo. É importante destacar este aspecto porque ambos os países rejeitam teorias fatalistas em que a humanidade estaria condenada a enfrentar um choque de civilizações, como postulam as teorias realistas das Relações Internacionais.

Adicionalmente, precisamos observar com atenção o atual quadro da conjuntura mundial. Temos guerras “quentes”, como as que ocorrem na Líbia, Burkina Faso, Somália, Sudão, Iêmen, Nigéria, Síria, Ucrânia, Palestina, entre outras. Outras são guerras “frias”, como as orquestradas contra a Coreia do Norte, Irã e Cuba. Há ainda guerras comerciais e tecnológicas, tal como o governo de Washington tentar impor à China. O pano de fundo central desses conflitos é a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos como uma única superpotência e também de uma governança mundial baseada em suas regras.

É preciso considerar que, desde a crise financeira global de 2008, a ordem internacional liderada pelos Estados Unidos tem enfrentado uma nova gama de dificuldades, uma vez que já não dispõem de meios para enfrentar sozinhos os novos desafios que surgiram desde então. A criação de novos fóruns internacionais para lidar com novas questões globais é exemplo disso. O G20 foi alçado de uma reunião ministerial para uma de cúpula com o objetivo de coordenar as medidas econômicas para mitigar os efeitos da crise do subprime, em 2008. Também as Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COPs) mudaram de patamar. Em 2009, durante a COP 15, em Copenhagen, os chefes de Estado se envolveram para criar uma plataforma de ação conjunta. A isso se agrega a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), a Rio+20, em 2012. Hoje em dia, aumentaram demasiadamente os desafios transfronteiriços, como as crises migratórias, o crime organizado, o cibercrime e a regulamentação da inteligência artificial.

Diante disso, deve-se prestar atenção no que ocorre no Sul Global e os papéis exercidos por Brasil e a China. Em agosto de 2023, na África do Sul, foi anunciada a expansão do Grupo BRICS, com os convites para a entrada da Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito e Irã. A Argentina foi convidada, mas o governo de Javier Milei recusou. Este processo mostra que a nova ordem multipolar deve ser uma construção vinda de baixo e não uma imposição vinda de cima. O novo Grupo BRICS é inclusivo e incorpora países com diferentes graus de desenvolvimento e uma grande diversidade cultural.

É importante ressaltar que este alargamento vai ao encontro das iniciativas chinesas em matéria de Desenvolvimento Global, Segurança Global e Civilização Global, que estão a tornar-se um novo paradigma para a construção de uma ordem internacional inclusiva e multipolar. A Iniciativa da Nova Rota da Seda está criando um novo paradigma de investimentos para o desenvolvimento, levando os Estados Unidos a criar a Development Finance Corporation (DFC) para concorrer com os financiamentos chineses.

Acerca da Iniciativa de Segurança Global, em fevereiro de 2023 a China buscou criar um roteiro para a solução da Guerra na Ucrânia. Além disso, teve papel destacado na reaproximação entre os governos de Riad e Teerã, em abril de 2023, até então os principais rivais no contexto do Oriente Médio. Recentemente, por conta dos episódios na faixa de Gaza, diversos chanceleres de países árabes e muçulmanos se reuniram em Pequim, em 20 de novembro, para pressionar Israel por uma trégua e a permissão de envio de ajuda humanitária para os palestinos. O governo brasileiro busca se manter atuante para encontrar uma solução negociada para ambos os conflitos.

Por fim, em meio a um maior protagonismo dos países do Sul Global, é necessário enfatizar que todos as nações buscam o desenvolvimento para oferecer melhores condições de vida ao seu povo. Conforme ressaltamos, não existe uma hierarquia de culturas e civilizações. Nenhum modelo universal se adapta a todas as realidades e só pode ser sustentado pela força. Por isso, o hegemonismo e a homogeneização do mundo devem ser refutados. O jardim da humanidade é composto por mil flores, que lhe conferem uma beleza única. Uma nova ordem mundial deve permitir a cooperação internacional para que cada nação possa construir um modelo econômico e social que garanta aos seus cidadãos prosperidade, segurança e estabilidade. Por conta disso, a parceria entre o Brasil e a China deve ser comemorada com um exemplo para a construção desse novo mundo.

Professor Marcos com o Embaixador da China no Brasil, Chen Duqing (Arquivo pessoal, 2013)

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