Análise: Brasil e China apostam no pragmatismo para trazer paz à Ucrânia, mas Zelensky é obstáculo

Foto: Ricardo Stuckert/PR

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas dizem que o plano apresentado pelos países para encerrar o conflito ucraniano é eficiente, mas frisam que Vladimir Zelensky pode rejeitar a proposta por se tratar de dois países próximos da Rússia e por sua intenção pessoal de perpetuar o embate.

Em recente viagem a Pequim, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, expressou apoio ao plano traçado por Brasil e China para alcançar a paz entre Rússia e Ucrânia.

O plano foi anunciado em maio, durante um encontro em Pequim entre o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, e o ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi. O projeto tem como base seis pontos, que incluem a redução das hostilidades e a organização de uma conferência internacional pela paz que inclua todas as partes envolvidas na mesa de negociação.

Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam se há possibilidade de Zelensky considerar a proposta para encerrar o conflito, uma vez que a estratégia dos EUA e de seus aliados europeus não tem surtido efeito.

O que propõe o plano elaborado por Brasil e China?

Para Eduardo Galvão, professor de relações internacionais do Ibmec Brasília, o principal ponto da proposta é trazer soluções pragmáticas para temas sensíveis que atualmente travam as negociações de paz, sendo o principal deles a disputa em torno de regiões que optaram pela adesão à Rússia.

“Essas questões são deixadas de lado para negociações futuras, mediadas por atores internacionais, o que é uma forma de abrir espaço devagar, passo a passo, para o diálogo, sem travar a discussão em temas que, no momento, parecem insolúveis.”

Outro ponto, acrescenta o especialista, é que o plano determina a neutralidade da Ucrânia, o que seria uma forma de dissipar o temor da Rússia de ter suas fronteiras cercadas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

“É uma questão de soberania, de proteção. Além disso, a proposta foca ainda na criação de mecanismos de não agressão mútua, com o propósito de garantir que nem o Ocidente nem o Oriente ameacem diretamente as fronteiras russas no futuro.”

Ele informa que, com o plano, Brasil e China tentam mudar a abordagem de se prender à polarização que marcou o período da Guerra Fria.

“O que o Brasil e a China estão sugerindo aqui é que em vez de continuarmos presos a alianças militares rígidas, estratégias de confronto, deveria se priorizar o diálogo e a diplomacia multilateral […]. Esse é o caminho que contraria a tendência atual do Ocidente, que tem apostado muito nas sanções, nas pressões militares, mas será que é uma estratégia que realmente resolve o problema? Não me parece. Então, essa a proposta sino-brasileira. Ela aposta em algo diferente, é uma abordagem que busca equilíbrio, busca neutralidade.”

Qual a probabilidade de Zelensky aceitar discutir o plano?

Até o momento, Vladimir Zelensky se encontra irredutível em sua decisão de não sentar na mesa de negociações com a Rússia. Nesse contexto, questionado sobre qual a probabilidade da proposta de o Brasil e a China avançarem, Galvão afirma que até então a estratégia foi discutir os termos com apenas uma das partes do conflito, o que não foi aceito pelo presidente russo, Vladimir Putin.

“Isso foi, inclusive, comentado por Putin. Ele falou: ‘Olha, não posso aderir, não posso concordar com uma proposta da qual eu não participei da negociação. O Ocidente não pode me impor as suas condições. Se quiserem conversar, eu estou disposto.’ Então, me parece que, sendo uma proposta construída entre países que tentam se colocar em uma posição mais neutra, ou seja, que não tomaram partido do Ocidente nem da Rússia e dos seus aliados, me parece que esses termos teriam mais condições de avançar.”

O que Brasil e China ganham em termos políticos caso a proposta vingue?

Galvão afirma que Brasil e China “têm empreendido esforços para se posicionarem como potências mundiais”.

“Então, isso [a proposta sendo bem-sucedida] reforçaria muito o papel como lideranças globais dos dois países, principalmente nos fóruns onde eles fazem parte. A gente está falando de América Latina, de Mercosul, a gente também está falando de BRICS.”

Ele acrescenta que Brasil e China também têm interesses comerciais na busca pelo fim do conflito, uma vez que ele “atrapalha alguns fluxos comerciais, principalmente de commodities”, que são comercializados por ambos.

Fernanda Albuquerque, doutoranda em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, avalia a proposta de Brasil e China como bastante realista, prática e imparcial.

Entretanto, ela acrescenta que o fato de ter sido elaborada por dois países que têm proximidade com a Rússia e integram o BRICS faz com que Zelensky não veja a proposta com bons olhos.

“Os mediadores ideais, pensando em termos de relações internacionais, seriam países neutros em relação aos dois lados do conflito, país neutro tanto em relação à Rússia quanto à Ucrânia, o que é complicadíssimo de a gente apontar. Mesmo porque eles até existem, mas países que sejam neutros não vão ter o protagonismo ou a influência internacional que seria necessária para liderar uma negociação dessa magnitude, o conflito mais falado do século XXI ao lado do conflito Israel-Hamas.”

Para Albuquerque, uma solução razoável seria a mediação ser feita por “um país aliado da Rússia e um país aliado da Ucrânia, como China e Estados Unidos”.

A entrevistada afirma ainda que há interesse de Zelensky em prolongar o conflito, que está conferindo a ele a notoriedade e visibilidade que nunca sonhou, e apenas conseguiu por conta do conflito e do apoio ocidental.

“Então, com certeza, esse conflito ajuda a manter esse poder, a perpetuar a sua manutenção no cargo. E há uma herança histórica de seu nome, de seu mandato na Ucrânia.”

Russofobia afeta a percepção do conflito

Albuquerque ressalta que a imagem de inimigo construída pelo Ocidente em torno da Rússia prejudica o entendimento sobre as causas do conflito. Ela frisa que a russofobia acompanha a Rússia desde a Guerra Fria e não acabou com o fim da União Soviética (URSS).

“O mundo ocidental não retirou aquela imagem que tinha da União Soviética, apenas transferiu. O que era União Soviética virou Rússia e continuou meio que mantendo esse inimigo, mantendo o outro como ruim, como negativo em oposição aos Estados Unidos, ao mundo ocidental.”

Ela alega que essa russofobia impede a percepção das causas do início do conflito, e ressalta que, diante de “todos os conflitos que existem, há um motivo pelo qual acontecem, existe toda uma construção”.

“[…] essa russofobia é muito grande, é transparecida, é mostrada para nós como se fosse tudo muito irracional, do que vem do Putin, do que vem do Oriente, do que vem da Rússia”, manifesta a especialista.

Para plano dar certo, Ucrânia deve se libertar do controle dos EUA

Trabalhando como engenheiro industrial, Miguel Machado viveu 16 anos na Ucrânia e foi presidente da Associação Cimenteira da Ucrânia.

Ele aponta que em 2014, após o golpe de Estado que depôs o presidente Viktor Yanukovych e levou ao poder Pyotr Poroshenko, apoiado por Washington, o país vivenciou um violento processo de ucranização nos planos “multiétnico, multicultural, multirreligioso e multilinguístico”, no qual o idioma russo passou a ser proibido. Nomes de locais públicos, como ruas e praças, foram alterados.

“Aliás, os primeiros setbacks [reveses] da nova democracia saída de 2014 na Ucrânia, como as perseguições e os assassinatos políticos, que houve bastante, foram todos silenciados no Ocidente. No Ocidente não se soube de nada.”

Ele afirma que essa estratégia foi articulada para transformar a Ucrânia em um “objeto antirrusso e, de preferência, que projetasse a solidariedade estratégica dos Estados Unidos”.

“Mas, para isso, era preciso eliminar o elemento russo. E foi-se a tudo, não é? Não foi só mudar o nome das ruas, muita gente ficou [morta] pelo caminho.”

Machado considera Brasil e China capazes de serem mediadores, mas diz que ambos, inevitavelmente, são vistos a favor da Rússia. Isso porque a Ucrânia se transformou no que ele aponta como uma fronteira dos valores ocidentais que luta pelo velho paradigma.

“O próprio […] Zelensky antagonizou Lula, antagonizou a China e, neste momento, acho que do lado de Kiev não há condições para aceitar esses dois parceiros.”

Ele avalia que para que o Brasil e a China desempenhem o papel de mediadores, primeiramente é necessário haver mudanças de regime que tornem a Ucrânia “libertada do controle americano”.

“Enquanto os Estados Unidos controlarem a tomada de decisão na Ucrânia e financiarem o seu Estado, vão continuar a usar essa plataforma como a usaram até agora.”

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