A importância da viagem de Lula a Berlim e a retomada da cooperação internacional alemã

Olympio Barbanti Junior, professor de Relações Internacionais da UFABC, explica em entrevista à Fórum quais os possíveis efeitos dos atos assinados entre Brasil e Alemanha, que versam principalmente sobre questões ambientais

(Foto: Ricardo Stuckert)

Logo após participar da Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, a COP 28, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi direto para Berlim e passou três dias na capital da Alemanha cumprindo agendas intensas com políticos e empresários. 

Ainda nas primeiras horas em solo alemão, pouco antes de um jantar de trabalho oferecido pelo chanceler federal (equivalente a primeiro-ministro) da potência europeia, Olaf Scholz, Lula já deu o recado de qual seria o objetivo de sua incursão: atrair investimentos para o seu país. 

O mandatário brasileiro analisou que, depois da queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, o governo e empresários alemães se voltaram muito a ocupar espaço na antiga Alemanha Oriental e que, neste momento, seria a hora de investir na América do Sul, sobretudo no Brasil. 

“Eles já fizeram todas as fábricas que tinham que fazer nos países da Europa Oriental, já fizeram os investimentos, já ganharam o direito de exportação, agora é preciso voltar para o Brasil. E sobretudo nesse momento que o Brasil está trabalhando a questão de energia limpa, de renovação, transição energética, Amazônia, biodiversidade, o Brasil é a bola da vez, é só investir”.

No dia seguinte, Lula, Scholz, ministros brasileiros e alemães realizaram uma Reunião de Consultas Intergovernamentais de Alto Nível. Trata-se de um marco de retomada da cooperação entre Brasil e Alemanha, visto que o último encontro do tipo aconteceu em 2015, quando a ex-chanceler alemã Angela Merkel esteve em Brasília. 

O lema da reunião foi “Brasil e Alemanha: Parceiros Firmes para o Progresso e a Sustentabilidade”. Através das discussões, foram acordadas cooperações nas áreas econômica, de energias renováveis, desenvolvimento sustentável, meio ambiente e proteção do clima, digitalização, ciência, tecnologia e inovação, agricultura, combate à fome e à insegurança alimentar, além do combate às ameaças à democracia, como a desinformação e o discurso de ódio. Também foram pautas da reunião o acordo Mercosul-União Europeia, guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza e reforma do Conselho de Segurança da ONU.  

Com resultado das Consultas de Alto Nível, foi lançada a “Parceria Brasileiro-Alemã para a Transformação Ecológica Socialmente Justa”, com a assinatura de 19 atos e acordos de cooperação que tratam, principalmente, de parcerias para o desenvolvimento sustentável e redução do desmatamento. Somente para os projetos ambientais, a Alemanha anunciou investimento de 103,5 milhões de euros – cerca R$ 550 milhões

Para ajudar a entender qual o significado e importância desta retomada da parceria entre Brasil e Alemanha, bem como contextualizar o histórico desta relação, apontar perspectivas para o futuro e debater outras temáticas de relevância para os dois países, Fórum entrevistou Olympio Barbanti Junior, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) que tem forte atuação nas áreas de meio ambiente, sustentabilidade e segurança alimentar. 

Mestre em Desenvolvimento Social na Universidade de Wales e PhD em Políticas Sociais pela London School of Economics (LSE), Barbanti Junior possui larga experiência com temas ambientais, já tendo trabalhado em organizações públicas e privadas, inclusive na cooperação bilateral com o governo da Alemanha. 

(Foto: Ricardo Stuckert)

Confira abaixo a íntegra da entrevista: 

Fórum – Desde 2015 que Brasil e Alemanha não realizavam Consultas Intergovernamentais de Alto Nível. Qual a importância dessa iniciativa entre os dois países ser retomada quase 10 anos depois? 

Olympio Barbanti Junior – O significado é uma reinstitucionalização da principal cooperação bilateral que o governo do Brasil tem. Por que a principal? Porque é a mais abrangente e possivelmente a que envolve mais recursos. Por que ela é mais abrangente? Porque ela tem uma estrutura, ao menos tinha uma estrutura de acordo guarda-chuva. Em inglês se usa o termo umbrella agreement. Esse acordo guarda-chuva permite que o país cooperante, o país que está emitindo a cooperação internacional, atue em diversas áreas e tenha uma liberdade de atuação bem maior do que outras formas de cooperação internacional. Então, a cooperação internacional alemã é antiga e inclui, por exemplo, a usina nuclear de Angra 1. A Alemanha coopera com o Brasil há muitos anos em diversas áreas. Mas possivelmente vai cooperar também na área militar.

Esse conjunto de atos é constituído de memorandos de entendimento, declaração conjunta. É, na verdade, uma reinstitucionalização dessa cooperação bilateral que se fortificou a partir de 1995. E ajudou, de uma maneira muito marcante a estruturar a área de meio ambiente do governo federal, de governos estaduais e municípios da região amazônica. Por quê? Porque não existia Ministério do Meio Ambiente até o governo Itamar Franco. Quem criou foi Itamar, mas ele só foi efetivamente estruturado depois com Fernando Henrique Cardoso. E decisivamente com a cooperação alemã. Naquela época existia um programa que recebeu financiamento bilateral e multilateral chamado Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. Era o PPG7, que terminou e foi transformado no programa do Fundo Amazônia, que foi paralisado a partir do governo de Michel Temer. Isso causou uma paralisação em diversas áreas sociais e ambientais. 

Então, é uma reinstitucionalização, mas ela não parte do zero. E não partindo do zero, esses atos que foram assinados têm muito mais força do que teriam se fosse uma primeira cooperação com um país. Ou seja, uma coisa é você ter um memorando de entendimento com um país com o qual você não teve cooperação bilateral, e outra coisa é um país com que você já conhece todo mundo, já tem prática de cooperação, já teve diálogos de alto nível na área ambiental. Isso vai possibilitar uma implementação bastante rápida desses memorandos, dessas declarações conjuntas e outros.

O que me parece novidade nesse arcabouço de cooperação bilateral é que ele se propõe a uma abertura de diálogo com o setor agrícola. E aí tem um ponto de divergência complexo, porque a Alemanha é produtora de uma boa parte dos agrotóxicos que são vendidos no Brasil, utilizados na agricultura inclusive na Amazônia, com um enorme impacto sobre a biodiversidade.

No governo Bolsonaro houve um desmonte nas políticas ambientais. No atual cenário em que vários países do mundo colocam a questão da transição ecológica como prioridade, e com o governo Lula firmando essa parceria com a Alemanha, acredita que há possibilidade do Brasil se tornar algum tipo de protagonista no desenvolvimento sustentável e até mesmo que atingir a meta de desmatamento zero até 2030, que inclusive Olaf Scholz se comprometeu a apoiar? 

Bem interessante a pergunta. Eu diria que esse histórico da cooperação existente fez com que o Brasil estabelecesse uma capacidade interna muito sofisticada. E que o Brasil fez a partir do final do governo Bolsonaro é de uma grande inovação internacional. Por que no final do governo Bolsonaro? Porque foi naquela época que o Banco Central emitiu cinco novas normas. E essas normas do Banco Central demandam que as instituições financeiras publiquem a partir deste ano relatórios de riscos sociais, ambientais e climáticos. E a instituição financeira que não publicar esse relatório não poderá mais operar como instituição financeira. Ou seja, é uma medida que tem um grau de importância, um grau de exigibilidade muito elevado. E isso foi feito por técnicos do Banco Central, que passou naquele final do governo Bolsonaro onde os apoiadores do então presidente não estavam prestando muito mais atenção no que estava acontecendo.

Mas, obviamente, não é algo que era uma política típica do período bolsonarista. Então, o atual plano de transformação ecológica do governo, que propõe o mercado de carbono regulado que está sendo negociado, emissão de títulos sustentáveis, taxonomia sustentável e reformulação do Fundo Clima, tudo isso tem sustentação na área financeira.

Então, a cooperação internacional com a Alemanha pode nos ajudar? Pode. Eles têm a contribuir? Têm. Em processos de gestão, em processos de monitoramento por satélite, controle de imagem, planejamento territorial e, principalmente, na chamada bioeconomia. Mas esse acordo, depois de quase 10 anos de não-operação, ele não recomeça do zero, ele recomeça já numa velocidade onde o governo brasileiro tem a ensinar. O governo brasileiro está bastante adiantado no uso de instrumentos financeiros como regulador das medidas de conservação ambiental.

(Foto: Ricardo Stuckert)

Após essas reuniões com Olaf Scholz, Lula voltou a defender a reforma do Conselho de Segurança da ONU. Nesse sentido, ele foi apoiado pelo chanceler alemão, que falou publicamente sobre a necessidade dar mais poder decisório aos países do Sul Global nos mecanismos de governança. Acredita que esse apoio alemão possa pesar em uma eventual reforma do Conselho de Segurança? Como você avalia essa apoio público de Scholz à demanda do presidente Lula?

Como um apoio importante. Mas, para conseguir a reforma do Conselho, eu acho que vai demandar bem mais do que isso. Porque, afinal de contas, o poder de veto é instrumental para todos aqueles que têm esse poder de veto. Países como o Reino Unido, França, China, eles até têm interesse em diminuir o poder dos Estados Unidos. Mas, o que está em jogo, junto com a reforma do Conselho de Segurança, me parece que é uma reforma mais ampla do sistema das Nações Unidas. O que eu posso dizer em relação a isso? Sim, é um apoio importante, mas não é isso que vai mudar o rumo da reformulação do sistema das Nações Unidas.

Em coletiva após as reuniões, Olaf Scholz mencionou os atos golpistas no Brasil em 8 de janeiro. Ele condena o que aconteceu e diz que a democracia foi ameaçada. Nas agendas, foi debatida a defesa da democracia e o combate ao extremismo. Na esteira disso, foi assinada uma declaração conjunta sobre a integridade da informação e combate à desinformação. Por que você acha que isso foi pauta do encontro na Alemanha? Em que contexto acredita que na Alemanha, hoje, se insere essa pauta de defesa da democracia? 

Eu acho que em três pontos. O primeiro é que, como o Lula disse, a questão da desinformação, da manipulação das redes de comunicação, das redes sociais, deveria ser um ponto de preocupação, um ponto de pauta do Conselho de Segurança. Porque o nível de manipulação é tão elevado que é capaz de solapar governos democráticos e colocar no poder governos tiranos que não têm compromisso com a democracia e, portanto, com o entendimento que existe hoje na democracia ocidental de qual deveria ser o arranjo político, social e econômico, que é um arranjo democrático e que defende os direitos humanos.

O segundo ponto de preocupação é que todos os países estão vulneráveis, inclusive a Alemanha, à manipulação da informação. Então, quanto maior o número de países que se associarem a iniciativas desse tipo, maior é a possibilidade de haver um controle sobre a desinformação.

E o terceiro ponto é que uma parte dessa desinformação está ligada a grupos de extrema-direita, sendo que alguns deles manifestam uma preferência por uma agenda política neonazista. Então, isso acende um sinal amarelo, quase vermelho para os democratas alemães, que não só não aceitam isso dentro da Alemanha, mas também se preocupam com o fato de que isso pode proliferar em outros países.

Na passagem de Lula pelos Emirados Árabes, o presidente francês Emmanuel Macron se colocou publicamente contra o acordo Mercosul-União Europeia. Na Alemanha, Olaf Scholz se disse favorável ao acordo e afirmou acreditar que é possível angariar votos no Parlamento Europeu para aprová-lo. Quais suas perspectivas deste acordo? Avalia que este apoio alemão pode ter alguma influência? 

A questão é que na França os produtos agrícolas têm um peso enorme nas intenções deste acordo, principalmente dos lácteos para a entrada no Brasil. E uma das posições do presidente brasileiro, principalmente agora, é por restringir isso. O governo Bolsonaro havia feito a entrada de produtos franceses, lácteos – estava mais preocupado com a exportação do grande agronegócio, a soja, a carne, algodão, o milho. Naquele formato em que estava a negociação do acordo do Mercosul, haveria um impacto muito grande para os produtores nacionais de lácteos, que já está muito ruim. Os produtores brasileiros de leite estão com a margem de lucro baixíssima. Então, na reformulação do acordo com o governo Lula, foram feitas exigências do ponto de vista do mercado de lácteos e do ponto de vista da questão ambiental que não interessam muito para a França, mas interessam para a Alemanha. Um pouco da explicação é essa, porque as negociações entre Brasil e França passam muito mais pela agricultura e para a Alemanha passam muito mais pela indústria.

Se isso vai levar a uma aprovação ou não [do acordo Mercosul – União Europeia] no Parlamento Europeu, eu não sei dizer. Há um jogo de forças hoje no parlamento europeu, mas, de um modo geral, me parece que depois de 20 anos o acordo não tem elementos realmente positivos para o Brasil. Parece que existe cada vez mais um consenso, principalmente entre os brasileiros mais desenvolvimentistas, progressistas, que o acordo acaba beneficiando muito mais o grande agronegócio do que a indústria e pequena agricultura no Brasil e em outros países do Mercosul. Então, eu acho que a tendência do acordo é acabar mesmo e, nessa arquitetura mundial, ter um retorno para as negociações bilaterais de comércio. Parece difícil que um acordo com o Mercosul, onde a área agrícola tem um grande peso, vá adiante. Não me parece que vá frutificar. 

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