A China não “está de volta” ao socialismo

Saudação de um brasileiro ao 72º aniversário da nova China | Por Luan Medeiros, para o Voz Operária e a Agência Brasil China

Lembro-me quando comecei a me inteirar sobre o mundo para além das aulas de história e de geografia no ensino médio. À época, por influência de um amigo, me aproximei da juventude o PCBrasileiro, e lá tive meus primeiros contatos com a história do movimento comunista internacional. Apesar de não integrar o partido formalmente, cheguei a ser convidado para um congresso e tive acesso às teses e resoluções partidárias.

Muito se falava sobre a história da revolução russa, as glórias e a derrota do bloco soviético. Pensava: “É isso? Tudo acabou em 1991?” E os meus superiores me explicavam que não, na verdade a derrota soviética teria sido uma traição. Para provar essa tese, mencionavam os plebiscitos apresentados aos povos soviéticos que rechaçavam uma eventual dissolução, com números que variavam de 70% a 90%.

“Mas e hoje?”, eu perguntava. “Ainda haveria alguma experiência do socialismo que ainda vigorasse?” E a resposta era: “Sim, temos Cuba!” Depois de alguma leitura, cheguei às outras experiências que não teriam tido o mesmo destino do bloco soviético. Então, novamente perguntava: “E além de Cuba, como Coréia, Vietnã e China?” Me explicariam que a Coréia seria uma “monarquia de estética estalinista”, enquanto que Vietnã e China teriam “restaurado o capitalismo”, e que os Partidos Comunistas teriam, novamente, “traído a Revolução” e utilizassem um “verniz vermelho” para “enganar o povo”, ou algo que o valha.

Esse tipo de narrativa nunca me convenceu. Tinha a impressão de que não era apenas aquela propaganda eleitoral – com a bandeira do partido tremulando em um chroma-key de baixa qualidade, enquanto o então Secretário-Geral denunciava os males do capitalismo com A Internacional tocando ao fundo – que me fazia perceber o PCBrasileiro como uma instituição atrasada, engessada e saudosista.

Nesse saudosismo de uma base composta em sua maioria pelo funcionalismo público, algo veio a calhar: tive meu primeiro contato com a produção do historiador e filósofo italiano, Domenico Losurdo. Para tentar combater os males da propaganda estadunidense na juventude do partido, me recomendaram a leitura de “Stalin: História Crítica de Uma Lenda Negra” e “Fuga da História?” No entanto, um aviso me foi dado sobre o segundo livro: apenas a primeira parte valeria a pena, já que na segunda metade haver um “devaneio” do autor sobre o caráter da “restauração capitalista” da República Popular da China.

Avançando na linha do tempo e deixando para outro momento os motivos da minha ruptura com o campo da “estratégia socialista”, cheguemos aos dias de hoje.

China de volta ao socialismo?

Muito tem se falado da queda da gigante Evergrande, e como isso afetaria toda a economia mundial. Toda a sorte de liberais ocidentais em estado de êxtase, fantasiando o ruir do regime de Pequim: agora vai! Sugeriam alguma identidade entre a crise do mercado imobiliário chinês com aquela percebida em 2008 pela falência do banco de investimentos Lehman Brothers. No entanto, a ausência de eco dos jornais chineses com todo esse frenesi fez alguns daqueles extasiados voltarem a si. O que teriam feito os chineses para que não se desesperassem com a possibilidade, anunciada pelo ocidente, de uma gravíssima crise econômica?

Em um encontro sobre a Evergrande na última segunda, Luiz Eduardo Vidal, do escritório de advocacia DeHeng, mencionou uma série de “ajustes finos” que os reguladores chineses vêm aplicando no mercado imobiliário. Charles Tang, presidente da CCIBC, explica que o antigo modelo – pelo qual empresas chinesas se alavancavam a partir de volumosos créditos públicos, já não tem mais o mesmo peso de outrora. Nessa mesma ocasião, Camila Vianna, do Kincaid, mencionou que desde 2017 o governo vem reivindicando a função social da moradia, e que não deve servir à especulação.

Ao que tudo indica, e que parece estar se tornando um consenso, é de que a crise da Evergrande foi premeditada pelos chineses. Bruno Guimarães, editor do Shumian, vai além: essa transição no modelo de desenvolvimento que vemos hoje ter efeito na China já está em pauta há pelo menos 10 anos, na transição de Hu Jintao para Xi Jinping.

Essa nova fase da China, de regulamentações em diferentes esferas, está também sendo percebida por jornalões ocidentais. Em um artigo de Stephen McDonell para a BBC, intitulado “Por que a China parece estar no caminho de volta ao socialismo”, o correspondente suscita uma série de supostos eventos na vida pessoal do presidente Xi. Para ele, depois do governo “depositar sua fé” em uma economia que permitia que “algumas pessoas se tornassem extremamente ricas”, a mudança de direção percebida hoje pelo sr. McDonell, que “começou a colocar o comunismo de volta no Partido Comunista”, é obra de um homem e seus dramas pessoas.

O mais interessante nessa leitura não está no fato de um homem – cujo pai teria sido “perseguido” por “fanáticos do Partido Comunista” – com habilidade ímpar para dar um giro na direção contrária de uma suposta “manobra filosófica” (referindo-se ao mote “socialismo com características chinesas”), ou na habilidade ímpar de um único homem capaz de pôr 1.4 bilhões de pessoas em marcha por seus dramas pessoais. O curioso mesmo está na crença de que os chineses teriam passado por uma restauração capitalista. Talvez o correspondente da BBC reze a mesma cartilha que nossos amigos esquerdistas supracitados.

Visto que nos dias de hoje a imprensa ocidental tenha posto em dúvida aquele consenso sobre a restauração capitalista na China, talvez seja o momento de ler aquela segunda parte de “Fuga da História?” que os veteranos do PCBrasileiro mandavam deixar de lado.

Losurdo e a Revolução Chinesa

Em um mundo hostil à Revolução, Lenin propôs a NEP de forma a reestruturar economicamente um país arrasado, permitindo que setores atrasados da sociedade retomassem suas atividades econômicas, sem, no entanto, devolver o controle político. Quantas vezes não vimos a imprensa ocidental, e nossos amigos esquerdistas, se referirem à China por dois critérios: a “ditadura política”, com “liberdade econômica”?

Ao presidente Deng Xiaoping, os detratores ocidentais da nova China têm uma opinião divergente, porém complementar. Liberais o consideram um oportunista, já os esquerdistas acusam-no de traição, tal qual acusavam Lenin no período da NEP, apelidando a política de “Nova Extorsão do Proletariado” (LOSURDO, Domenico. Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje – Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 156).

Já para Deng Xiaoping, lembra Losurdo, “ontem, como hoje, o PCCh desenvolve uma política de frente única, apontando o socialismo e o papel dos dirigentes comunistas como a vida mestra que conduz à salvação e ao renascimento da nação chinesa no seu conjunto: ‘Desviem-na do socialismo e a China retrocederá inevitavelmente ao semifeudalismo e ao semicolonialismo’.” (p. 155)

Talvez em função da mentalidade acadêmica filoeuropeia, os esquerdistas brasileiros tenham endossado um devir messiânico ao socialismo e se aproximado dos “cristãos do Evangelho de São Marcos”, que “rechaçam, indignados, a suspeita de qualquer vínculo com a história do ‘socialismo real’ (…) de forma a readquirir credibilidade, desta vez aos olhos da própria burguesia liberal” (p. 19). Os esquerdistas prezam “o martírio, não o pensamento e a ação política, que remetem a uma histórica obstinadamente ignorada” (p. 21)

Para esses revolucionários – que não possuem sequer a experiência de gestão de um gabinete da câmara municipal, quiçá a de gerir uma revolução – há uma identidade entre a Revolução e a Redenção. Portanto, a revolução é o caminho do martírio, da penúria heroica, em defesa de uma causa maior que salvará a todos. Quando se administra o real, o revolucionário deixa de ser herói e se torna político. Para Deng Xiaoping, falar em “comunismo pobre” é uma contradição de termos:

“Compreende-se assim a polêmica desenvolvida por Deng Xiaoping contra a Revolução Cultural, acusada não só de incapacidade em desenvolver as forças produtivas, mas também de um desvio populista que levou a perseguir o ideal de “um ascetismo universal e um grosseiro igualitarismo”, duramente critico pelo Manifesto do partido comunista. Ao contrário, segundo Deng, “não pode haver comunismo com pauperismo ou socialismo com pauperismo”; falar em “comunismo pobre” é uma contradição nos termos. Comunismo e socialismo nada têm a ver com a distribuição igualitária da penúria e da miséria: em primeiro lugar “socialismo significa eliminação da miséria” e desenvolvimento das forças produtivas.” (p. 155)

Como costuma lembrar o professor Elias Jabbour, conceitos são historicamente determinados. É um absurdo tomar o socialismo por um checklist de meras características, as quais devem ser preenchidas para, só então, o acadêmico ocidental, em toda sua prepotência, poder aprovar essa ou aquela experiência como socialista. O socialismo é ontem, e hoje, o que há de mais avançado em matéria humana.

Nas palavras de Losurdo, Deng Xiaoping continua a inspirar-se na visão de Mao Zedong, na qual há unidade entre internacionalismo e patriotismo: “é desenvolvendo as forças produtivas e a riqueza social que a China pode proporcionar ‘uma real contribuição à humanidade’; não só liberta da fome um quarto ou um quinto da população mundial, mas estimula também o resto do Terceiro Mundo a sacudir o peso da miséria e do subdesenvolvimento.” (p. 157)

Com essas linhas, tendo em vista que hoje, Primeiro de Outubro de 2021, marca o 72º aniversário de fundação da República Popular da China, digo que a China não está “de volta ao socialismo”. O que vemos é uma nova redefinição do socialismo, em direção a algo ainda mais avançado do que qualquer outra formação social já vista, caminho esse pelo qual a nova China vem trilhando sem interrupções.

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