Embora o Soft Power (também chamado de poder brando) seja apresentado sob diferentes aspectos, há categorias de poder que são amplamente conhecidas: econômica, militar e cultural. Não se nega que todas três são importantes, cada qual com suas atribuições e objetivos. Porém, é justamente a questão cultural que tende a ser negligenciada, sobretudo quanto ao seu alcance e influência.
Não é de hoje que os chineses entendem seu papel hegemônico no mundo. Desde que a China foi alçada à condição de potência global, Pequim entende o poder brando como uma ferramenta que pode ajudar a mitigar, a longo prazo, a teoria da “ameaça da China”, bastante difundida na América Latina e na União Europeia. O país quer convencer a comunidade internacional da natureza pacífica da sua ascensão, e as oportunidades que representa para seus parceiros comerciais.
É neste contexto que chegou ao Brasil, no início de 2021, a Escola Chinesa Internacional (ECI). Criada com o apoio financeiro de empresários chineses e do Consulado Geral da China no Rio de Janeiro, o objetivo desta instituição, descrito no site da ECI, “é proporcionar um ensino de referência internacional no Brasil, seguindo o modelo da educação básica da China, a fim de revelar talentos excepcionais”. A instituição enfatiza, ainda, que esta é a primeira escola chinesa em um país estrangeiro, dando a entender que onde nasce uma, em seguida aparece outra.
Nesta reportagem especial, à Sputnik investigou o que representa a chegada dos chineses à educação infantil no Brasil, e de que forma o ensino escolar pode influenciar positivamente a imagem da China em um país cujo presidente insiste em uma retórica xenófoba, partilhada, inclusive, por parte de seu eleitorado e alguns ministros.
Conversamos com o professor Marcos Cordeiro Pires, da Unesp, especialista em relações internacionais, para entender os efeitos do poder brando de Pequim. Além dele, a diretora da ECI, Yuan Aiping, e o professor de história da instituição, Lucas Melo, falaram sobre o trabalho que é desenvolvido pelo colégio.
O ensino chinês
Em junho de 2019, a maioria dos jornais brasileiros noticiou: “China é destaque na avaliação Pisa; Brasil entre os piores na educação”. A manchete foi o retrato de um paradigma social antigo e conhecido pelos brasileiros: o déficit do sistema educacional no país. As universidades de Tsinghua e Pequim figuram entre as 20 melhores do mundo, segundo levantamento da Times Higher Education World University Rankings. A publicação não cita uma que seja do Brasil.
Estudos que atestam a precariedade do sistema de educação no Brasil apresentam muitas explicações para a defasagem dos alunos brasileiros, como as condições socioeconômicas no país, o racismo estrutural, e, principalmente, a falta de investimento nos profissionais que atuam no setor. O ano de 2020, por exemplo, foi o que teve menor investimento do Ministério da Educação (MEC) no ensino básico na década.
Neste sentido, é importante fazer uma ressalva para compreender-se melhor o Brasil. A nota das escolas particulares de elite do país o colocaria na 5ª posição do ranking mundial de leitura do Pisa, ao lado da Estônia, que tem o melhor desempenho da Europa. Já o resultado isolado das escolas públicas estaria 60 posições abaixo, na 65ª, entre 79 países. A nota geral do Brasil está entre as mais as baixas do mundo nas três áreas avaliadas, leitura, matemática e ciência.
É também neste cenário que desembarcou no Rio de Janeiro a ECI, para competir com as principais escolas de elite do país, que em nada deixam a desejar às outras no mundo, como atestam os exames do Pisa. Comentando o sucesso prematuro da escola chinesa, a diretora Yuan Aiping sentenciou: “O governo da China abriu uma escola para filhos de imigrantes, e filhos de executivos, filhos dos trabalhadores chineses que estão no Brasil, e a gente jamais poderia imaginar que seríamos abraçados desta maneira. Hoje, a imensa maioria de alunos são de filhos de brasileiros”.
Questionada sobre a eficiência do modelo de ensino chinês, a diretora Yuan Aiping apresentou uma explicação. “Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que o governo chinês incentiva a educação. Sempre se falou que a China é um país muito pobre, porém, desde que a China sofria com altos índices de desigualdade social, os professores eram bem remunerados. A China sempre priorizou esses profissionais. Na China há um ditado. O professor é a profissão mais brilhante, apenas abaixo do Sol”.
Para ela, os resultados destas políticas públicas são visíveis, “a China está sempre à frente no Pisa, e principalmente nas olimpíadas de matemática: quem sempre ganha medalhas é a China”. Ela também descreveu as aulas na ECI. “De manhã, às 7 horas começa a aula. Quando chega meio-dia, todos os nossos alunos voltam para casa. Eles descansam, almoçam, e depois voltam ao colégio. Até 18 horas”, disse ela, enfatizando que caráter integral do colégio é um diferencial em seu modelo de aprendizagem. Mas não é só isso.
– Outro ponto que deve ser enfatizado é o espírito de competição da China. O brasileiro não tem esse espírito de competição. Na China, ou você é o primeiro lugar, ou não tem parabéns. Não há cultura do segundo lugar. Na China, por causa da quantidade de pessoas que moram no país, é preciso ser o melhor sempre – comentou.
Ela também afirmou que “o governo chinês estimula uma educação muito rigorosa”, e que um diferencial que ela pode notar entre China e Brasil é o respeito à figura do professor. “Aqui nós tivemos que ensinar o aluno brasileiro a respeitar o professor. A não falar enquanto um profissional fala. São pequenas mudanças. Mas que fazem a diferença no resultado final”.
Tecnologia à serviço da educação
Brasileiro e professor da ECI, Lucas Melo falou sobre sua experiência na escola. “Na minha carreira foi um impacto muito grande. Nós não adotamos livros didáticos externos, e todo o material é reproduzido aqui na Escola Chinesa Internacional. Nós temos recursos, computadores, tudo que a gente precisa”.
Ele entende que há algumas mudanças no ensino praticado pela instituição chinesa. Segundo ele, uma primeira “adaptação foi a de tecnologia. Aqui nós temos um quadro da Huawei e cada aluno tem um tablet. Então há uma série de recursos que a gente pode trabalhar com eles”.
Ele revelou que, “recentemente, nós tivemos o aniversário de 60 anos da viagem do astronauta Yuri Gagarin. Nós usamos os equipamentos da Huawei para apresentar diversos mapas aos alunos, material da NASA, baixado on-line, antigos ônibus espaciais. Foi uma palestra com material muito vasto. Em uma escola normal, como os alunos não falam inglês, eu teria que traduzir o material todo”.
Questionado sobre a metodologia da ECI e as diferenças com os critérios pedagógicos praticados no Brasil, o professor disse que “dentro do conteúdo de história e geografia, o diálogo é essencial. E é nessa parte que entra a sinergia. Com os ensinamentos de Confúcio. A gente não pode dar a resposta inteira. É preciso permitir ao aluno chegar às suas próprias conclusões”. Ele lembrou que a escola chinesa pratica o Ensino Montessori, onde a autoeducação é a principal característica. Nesse sentido, a criança é vista como personagem importante e com papel ativo no processo de construção para o mundo.
A educação como ferramenta de Soft Power
O professor Marcos Cordeiro explicou que, na teoria nas relações internacionais, existem dois poderes: o Hard Power (militar, econômico, produtivo), e o poder brando, da cultura, de influenciar pessoas.
– Quando a gente pensa em um país que é muito distante, com um sistema político diferente, como é o caso da China, com absoluta certeza a questão da educação, e essa questão das vacinas é muito importante, também, assim como a culinária, a religião, e o próprio idioma, tudo isso faz parte de um pacote muito interessante que facilita o contato entre os povos, e é claro que também facilita a influência, que é o objetivo da China – afirmou.
– Se considerarmos, por exemplo, que a China está do outro lado mundo, e que a gente pouco conhece sobre o país deles, a educação, com a instalação da ECI é muito importante para ter a compreensão entre os povos. A educação cria pontos de contato entre culturas diferentes. É importante consideramos, neste sentido, quantos universitários brasileiros existem nos EUA. Qual é o nível de interação entre universidades brasileiras e norte-americanas. A gente sabe que a influência norte-americana no Brasil se dá por meio da cultura, finanças, militares, mas principalmente por este relacionamento acadêmico. É só pensarmos nas escolinhas de inglês. De uma hora para outra, recentemente, vemos crianças brincando de Halloween – explicou o professor.
– Na União Soviética, em Moscou, havia uma faculdade muito importante chamada Universidade de Amizade dos Povos Patrice Lumumba, que ajudou a formar quadros em diversos países no mundo. Uma maneira de aproximar os povos e ampliar por meio da educação esse conhecimento mútuo – concluiu Marcos Cordeiro.
Diretora da ECI, Yuan Aiping disse à Sputnik Brasil que, em conversa com outros chineses no país, era notória que a ausência de uma escola chinesa para ensino infantil causava algum tipo de incômodo. “Nós reparamos que haviam escolas francesas, alemãs, inglesas e norte-americanas, então por que não uma chinesa? Para fazer isso, nós fizemos parcerias com algumas das maiores empresas da China”. Entre algumas citadas por Yuan Aiping, está a Huawei, responsável pelos quadros nas salas de aulas e envolvida em diversas polêmicas no mundo por sua rede de 5G.
Questionada sobre o uso da educação como ferramenta de Soft Power, Yuan Aiping relembrou que, “em primeiro lugar, é preciso enfatizar que a nossa cultura é milenar, são 5.000 anos de história. Nosso modelo de pensamento e aprendizado inspirado no filósofo Confúcio tem muito valor e muitos livros traduzidos. A ideia é trazer o nosso pensamento, uma educação voltada para lealdade, vontade e integridade”.
– Eu quero trazer para o Brasil o pensamento da China sobre a educação, e isso tem um grande valor no mercado, é só observar como os brasileiros abraçaram a ECI. E o ensino da China traz consigo valores muito importantes para sociedade, de família, de conhecimento. Nosso orientador é o nosso pensamento Confúcio. Os brasileiros precisam entender a valorizar essa cultura de excelência da China – comentou.
Intercâmbio cultural e a chegada do Instituto Confúcio
O programa Instituto Confúcio começou em 2004, na Coreia do Sul. A exemplo do Instituto Camões, ou do British Council, da Alliance Française e da Società Dante Alighieri, seu objetivo é promover a língua e a cultura de seu país. Dez anos depois de sua estreia, haviam mais de 480 institutos Confúcio em cerca de 50 países, em cinco continentes. A expansão destas instituições de ensino acompanha o desenvolvimento meteórico da economia chinesa, e o professor Marcos Cordeiro explicou o porquê disso.
– A China é um dos maiores investidores estrangeiros. O setor elétrico tem muito investimento chinês, e o automotivo está crescendo. Para se formar gestores, negociar com a China, para poder importar, você tem que ter conhecimento da cultura e do idioma, para evitar os ruídos culturais. O Instituto Confúcio tem esse papel importante – assinalou o especialista.
Há quem diga que a instituição serve como moeda de propaganda do governo da China, e que, inclusive, temas como o Taiwan e o Tibete tornaram-se tabus nas discussões acadêmicas entre professores chineses e alunos. Há, além disso, outras queixas. A Universidade Osaka Sangyo, do Japão, em 2010, rescindiu seu contrato o governo chinês alegando espionagem, o que nunca foi comprovado.
Sobre a atuação do Instituto Confúcio no Brasil, o professor Marcos Cordeiro apresentou uma explicação. Segundo ele, a China e os EUA possuem diferentes concepções para o poder brando. Ao passo que os norte-americanos “se colocam com uma visão missionária no mundo, como seus valores fossem os únicos verdadeiros, universais, de liberdade, e democráticos”, eles tem como “objetivo vender o american way of life“.
Em contraposição, ele avaliou que “a cultura da China se basta em si. Eles não querem transportar uma religião para o mundo, não tem por objetivo, algo que União Soviética fez bastante, um proselitismo político, vendendo um sistema político, e patrocinando partidos comunistas no mundo inteiro. A China não faz isso. Do ponto de vista político, não há uma pauta oculta, como existe no Soft Power dos EUA”.
Ele lembrou que, desde o inicio de 2017, com o governo de Donald Trump, “se iniciou uma competição muito dura com relação à China e à Rússia”. O professor comentou que um marco deste fato foi quando o secretário de Estado de Trump disse que a América Latina não precisa de outras potências externas egoístas, que buscam defender seus próprios interesses. “Depois disso, ocorreu uma avalanche de desinformação com relação ao papel da China e da Rússia na América Latina”, comentou.
Para Marcos Cordeiro, as agências internacionais, principalmente as mídias do ocidente, passaram a criar narrativas contra a China. Ele comentou neste aspecto as questões em Xinxiang. “Coloca-se que há ali um genocídio, mas isso é uma informação falsa. Martela-se com muita força essa questão do genocídio em Xinxiang”. Em seguida, citando outro exemplo, ele criticou a forma como está sendo tratado o leilão da 5G no Brasil.
Sentimento Anti-China
No Brasil, apesar da imigração massiva de japoneses desde 1930, sendo esta a maior colônia de imigrantes no país, setores da sociedade, em especial após a chegada da covid-19, passaram a expressar sentimentos de xenofobia para com pessoas de traços orientais. As ilações de Jair Bolsonaro e Donald Trump sobre a China circulam pelos grupos de redes sociais com afirmações absurdas sobre chineses, japoneses, vietnamitas e povos orientais em geral.
No atual governo brasileiro, em especial, este sentimento é latente. Questionada se não houve preconceito com a chegada da ECI, a diretora Yuan Aiping revelou alguns episódios, mas também frisou a aceitação da população: “Ninguém acreditou durante uma pandemia tão difícil, que depois de um mês e meio a gente não teria mais vaga. Temos filhos de políticos e muitos filhos de deputados. Mas nem por isso a gente pode deixar de que não teve sentimento anti-China no Brasil”.
– Teve um episódio agora no início. Toda segunda-feira a gente canta o hino nacional brasileiro, e depois o chinês, no playground do colégio. Uma vez o nosso vizinho, do prédio ao lado, começou a xingar a gente. Começou a fazer barulho”. Em outra ocasião dois professores chineses que trabalham aqui foram à praia. Na volta, os dois foram xingados na porta do colégio. Isso acontece em outros lugares também. No ano passado, muito ‘bolsonarista’ foi no Consulado da China fazer um protesto. A polícia precisou fazer uma barreira para proteger as pessoas – disse a diretora, citando alguns episódios.
No Brasil, apesar da imigração massiva de japoneses desde 1930, sendo esta a maior colônia de imigrantes no país, setores da sociedade, em especial após a chegada da covid-19, passaram a expressar sentimentos de xenofobia para com pessoas de traços orientais. As ilações de Jair Bolsonaro e Donald Trump sobre a China circulam pelos grupos de redes sociais com afirmações absurdas sobre chineses, japoneses, vietnamitas e povos orientais em geral.
No atual governo brasileiro, em especial, este sentimento é latente. Questionada se não houve preconceito com a chegada da ECI, a diretora Yuan Aiping revelou alguns episódios, mas também frisou a aceitação da população: “Ninguém acreditou durante uma pandemia tão difícil, que depois de um mês e meio a gente não teria mais vaga. Temos filhos de políticos e muitos filhos de deputados. Mas nem por isso a gente pode deixar de que não teve sentimento anti-China no Brasil”.
– Teve um episódio agora no início. Toda segunda-feira a gente canta o hino nacional brasileiro, e depois o chinês, no playground do colégio. Uma vez o nosso vizinho, do prédio ao lado, começou a xingar a gente. Começou a fazer barulho”. Em outra ocasião dois professores chineses que trabalham aqui foram à praia. Na volta, os dois foram xingados na porta do colégio. Isso acontece em outros lugares também. No ano passado, muito ‘bolsonarista’ foi no Consulado da China fazer um protesto. A polícia precisou fazer uma barreira para proteger as pessoas – disse a diretora, citando alguns episódios.