A incorporadora imobiliária Evergrande, gigante do setor de construção na China, causou pânico em bolsas de valores no mundo inteiro na segunda (20/9) em meio a notícias de que a empresa corria risco de dar calote em parte de sua dívida bilionária, que passa de US$ 300 bilhões.
O mau humor foi sendo dissipado com a avaliação de que a probabilidade de o episódio se tornar o “Lehman Brothers da China”, uma referência à quebra do banco americano que catalisou a crise financeira global de 2008, não era tão grande.
Entre os argumentos está o fato de que o mercado financeiro chinês é bem mais fechado, o que reduz o potencial de contágio em escala mundial, e a possibilidade de que o governo interfira para evitar os desdobramentos negativos — uma marca do “capitalismo de Estado” praticado pela China.
Mas esse não é o único temor dos analistas.
O problema de liquidez da Evergrande colocou sob os holofotes um jogo de forças que há algum tempo vem mexendo com o setor imobiliário da China. De um lado estão as empresas, que há anos têm contribuído para o crescimento agressivo do país tomando muito dinheiro emprestado. De outro, o governo, que agora tenta impor limites a um endividamento que enxerga como excessivo.
Assim, a crise na gigante do setor pode ser prenúncio de algo maior, a desaceleração do setor da construção, que responde por cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) chinês. Nesse cenário, o Brasil, que fornece uma parte relevante do minério de ferro usado para erguer os arranha-céus no país, está no topo da lista dos potenciais prejudicados.
Devo, não nego
A Evergrande é hoje um império com 200 mil funcionários e cerca de 1.300 projetos em mais de 280 cidades.
Foi fundada em 1996 por Hui Ka Yan e cresceu com uma estratégia agressiva que a fez inclusive transbordar o setor da construção. O grupo tem uma divisão de veículos elétricos, investimentos na área de mídia e no setor alimentício, é dono de parque temático, o Evergrande Fairyland (ainda em construção), e um time de futebol, o Guangzhou FC.
O endividamento foi um pilar fundamental da expansão, e fez dela a incorporadora mais endividada do mundo.
O que aconteceu nesta semana foi um pequeno capítulo de uma história longa. Os mercados reagiram à notícia de que a companhia talvez não tivesse caixa para pagar títulos com vencimento na quinta-feira (23/9). A empresa acabou conseguindo negociar refinanciamento com um dos credores, mas o acordo não resolve o problema, já que a Evergrande ainda tem um volume extremamente elevado de passivo com vencimento neste e no próximo ano.
Ele lembra que um episódio semelhante já havia ocorrido em setembro do ano passado, quando investidores aceitaram alongar o prazo de um débito de US$ 13 bilhões da Evergrande para evitar uma crise de solvência na companhia naquele momento.
Muito além de uma empresa
O pesquisador acrescenta que o modelo de negócio da Evergrande não é um caso isolado.
“Essa é uma questão setorial. Ela é de longe a mais endividada, mas há várias outras empresas com nível de endividamento muito elevado.”
E foi esse o cenário que levou o governo chinês a tentar impor limites à alavancagem das incorporadoras imobiliárias. Uma série de controles regulatórios, batizados de “three red lines” (“três linhas vermelhas”, em tradução literal), vêm sendo implementados desde setembro do ano passado.
Um deles estabeleceu índices de endividamento que definem se as companhias poderão ou não tomar novos empréstimos. Caso ultrapassem o limite, as companhias ficam impedidas de fazer dívidas adicionais — o que aconteceu com a Evergrande, que se viu impossibilitada de acessar o canal tradicional do crédito para tentar pagar as dívidas com vencimento de curto prazo.
As medidas também afetaram um outro canal usado pelas empresas privadas para se financiar, o “shadow banking”, que reúne uma série de instrumentos que estão fora do escrutínio da legislação do sistema bancário no país.
Na tentativa de contornar a situação, a Evergrande chegou a tentar vender ativos para levantar os recursos para pagar os títulos de dívida no prazo, mas os valores não foram suficientes.
A ‘cruzada’ do governo chinês contra o endividamento
Em uma longa análise sobre a crise exposta pelo caso Evergrande, o professor de Finanças na Universidade de Pequim Michael Pettis escreveu que há anos as autoridades do país vêm numa cruzada contra o endividamento excessivo da economia chinesa.
As razões são várias. No caso do setor imobiliário, o acesso fácil aos empréstimos contribuiu para criar uma bolha que elevou artificialmente o preço dos imóveis e abriu espaço para especulação. Olhando especificamente para o mercado de crédito, por sua vez, a ideia de que o governo chinês sempre socorreria com vultosas injeções de capital as empresas que se vissem à beira da falência fez com que as instituições financeiras emprestassem aos grandes conglomerados sem muito critério.
“Ao tentar convencer os credores de que não protegeria mais os grandes tomadores de empréstimos, eles estão tentando transformar o sistema financeiro chinês, fazendo com que os credores sejam mais reticentes em financiar projetos pouco produtivos”, escreveu o especialista, que é também senior fellow no Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy.
Por isso, existe uma grande discussão no momento sobre se o governo chinês vai interferir na questão da Evergrande e, se o fizer, em que nível.
O que isso significa para a economia chinesa – e para o Brasil
No pano de fundo, a expectativa é que haja uma significativa desaceleração do setor imobiliário do país. Para o economista-chefe para a Ásia da consultoria Capital Economics, Mark Williams, esse era um cenário que estava colocado ainda antes dos novos controles regulatórios instituídos pelo governo.
“Ainda que as ‘três linhas vermelhas’ tenham precipitado a crise, ela não é a principal causa dela”, ressaltou em relatório enviado a clientes.
O setor imobiliário da China, segundo ele, está entrando em um ciclo longo de declínio. Entre os fatores que estão reduzindo a demanda por imóveis entre os chineses, ele cita o crescimento mais lento da população urbana — uma acomodação do movimento de forte migração de pessoas do campo para a cidade — e a tendência de diminuição de novos matrimônios no país.
“Muitas famílias veem o imóvel próprio como um pré-requisito para casar. Mas o número de novas famílias é cada vez menor: entre 2013 e 2019, o número de casamentos caiu 31%.”
Toda essa dinâmica acaba afetando diretamente o Brasil, já que pouco mais de 30% de tudo o que o país exporta tem como destino a China. Um dos principais canais é o minério de ferro: o preço da commodity já vinha caindo nas últimas semanas e despencou diante da expectativa de que a China vai passar a comprar menos.
O Brasil venderia menos tanto em valor, por conta da queda da cotação, quanto em volume, com a demanda deprimida. Com uma renda menor de exportações, a tendência é que essa dinâmica ajude a encarecer o dólar e enfraquecer o real.
O economista pontua que um capítulo em aberto é se a crise instalada com o caso Evergrande terá algum impacto sobre a confiança do consumidor chinês, contribuindo para reduzir ainda mais seu interesse por produtos imobiliários.
Os imóveis estão entre os principais investimentos das famílias no país. Elas chegam a pagar valores altos de entrada, de até 80% do valor total — um outro fator, aliás, que diferencia o cenário da China hoje dos Estados Unidos de 2008.
“Não há mercado de hipoteca organizado, o problema [do endividamento] está nas incorporadoras”, diz ele, reforçando a avaliação de que a crise de liquidez da Evergrande não deve ter o mesmo efeito de contágio no mercado financeiro global que a crise dos subprimes americana.
Do lado da economia real, a desaceleração é uma notícia preocupante para o Brasil especialmente neste momento, já que enfraquece um motor que vinha sendo importante diante da fragilidade de outros pilares de crescimento, diz o professor do Insper Roberto Dumas.
E se soma a outras notícias ruins que vêm deteriorando as expectativas para o próximo ano.