Esta é a opinião do escritor paquistanês Tariq Ali, editor da revista britânica New Left Review e há décadas um dos intelectuais de esquerda mais proeminentes do mundo.
A seu ver, a velocidade com que o Talibã voltou ao poder é surpreendente, mas o mesmo não pode ser dito sobre a falta de resistência do Exército afegão e do presidente Ashraf Ghani — ambos, ele diz, eram “fantoches” dos Estados Unidos. A derrota de Washington e a saída apressada após a guerra mais longa da História dos EUA, ele diz, completam o legado da “guerra ao terror” e seus atos “brutais e grosseiros de imperialismo”.
O senhor foi surpreendido pela velocidade e a facilidade com que o Talibã tomou Cabul e com a fuga do presidente Ashraf Ghani?
Não fiquei completamente surpreso que não tenha havido resistência do Exército fantoche criado pelos Estados Unidos e seus aliados porque sempre foi muito improvável que ele não reagisse. Há soldados que foram terceirizados e as forças foram infiltradas pelo Talibã há mais de 25 anos, fornecendo informação e aprendendo a usar as tecnologias militares mais recentes. Também não é uma surpresa que o presidente fantoche Ashraf Ghani tenha fugido do país cheio de dólares. O que me surpreendeu, no entanto, foi a velocidade chocante com que o Talibã tomou o poder. Vinte anos de ocupação entraram em colapso em uma semana, sem muita violência até agora. Isto é um sinal de como o controle dos EUA era fraco, porque mesmo em outras partes do mundo de onde eles se retiraram no passado, como do Vietnã e da Coreia, houve longas guerras civis.
O presidente Joe Biden disse que o objetivo da missão americana nos últimos 20 anos “nunca foi de construção de nação”. Se não, o que justificaria as duas décadas de ocupação?
Há duas versões disso, o argumento dito humanitário, que foi elaborado majoritariamente para servir às relações públicas voltada para os cidadãos americanos, britânicos e europeus, de que razão pela qual estamos lá é para liberar o país e as mulheres. O motivo real pelo qual atacaram, no entanto, é porque precisavam de um alvo após o 11 de Setembro, e Osama Bin Laden e a liderança da al-Qaeda estavam lá. Por que não atacar a Arábia Saudita ou o Egito, de onde vinham a maior parte dos terroristas? Porque eram aliados próximos. O Afeganistão era conveniente como transição para outras guerras, como vimos no Iraque e no resto do Oriente Médio.
Então, quando Biden diz que o objetivo era basicamente destruir a al-Qaeda, ele está correto, sinto dizer. Eles não tinham outra missão, eles não salvaram as mulheres afegãs, cuja condição vem sendo repercutida sem pausa pela imprensa britânica. Por que não falaram sobre isso nos últimos 20 anos? Por que mentiram que estava melhorando? As condições só melhoraram na Zona Verde, em Cabul, onde as ONGs financiadas por americanos e europeus trabalhavam com grupos pequenos de mulheres e outras pessoas. Não estou dizendo que isso é ruim, mas que foi muito limitado, criado para as relações públicas.
A vida no Afeganistão continua precária mesmo após 20 anos de invasão dos EUA. Não é hipocrisia de uma parte do establishment político americano crítico à retirada das tropas insistir na tecla de que precisam proteger os direitos humanos?
Permanecer no Afeganistão é um argumento tolo. Se você olha para os documentos revelados pelo Washington Post em 2019, por exemplo, era óbvio que os EUA não tinham como sustentar a guerra, e eles sabiam disso. Não havia apoio, não conseguiram construir um governo que pudesse ser defendido por eles ou apoiado pelo povo. Eles estavam isolados, apesar dos 20 anos de ocupação, apesar dos trilhões gastos, nada melhorou para o povo. Enquanto isso, bilhões de dólares foram gastos para pôr unidades de ar -condicionado para as tropas e escritórios americanos em um dos países mais pobres do mundo. Tudo que aconteceu em termos de infraestrutura interna é que muitas pessoas foram para Cabul nas últimas duas décadas, porque era lá que o dinheiro estava, para ver o que conseguiram aproveitar do lixo dos americanos.
É uma guerra muito feia em vários níveis. O único avanço, ironicamente, é que, quando o Talibã esteve no poder pela primeira vez, o tráfico de heroína estava sob controle. Hoje, com a ocupação, o Afeganistão fornece 90% do ópio do planeta. Cerca de 10% da população afegã tem problemas com o vício, e muitos soldados ocidentais que supostamente foram enviados para lutar pela liberdade e liberar as mulheres também têm. Depois de 20 anos, a guerra conquistou o que para o povo? Nada. É por isso que o governo pró-Ocidente entrou em colapso.
O Talibã vem adotando uma retórica mais amena do que quando esteve no poder pela primeira vez em busca do reconhecimento internacional. Evidentemente teoria e prática são coisas diferentes, mas havia necessidade para uma remoção de civis tão rápida e atabalhoada?
Está claro que o Talibã decidiu não atacar os americanos durante a retirada a menos que fossem atacados primeiro. Tudo isso foi acordado em várias reuniões que aconteceram entre os americanos e os talibãs, não há dúvidas. Então por que pânico e histeria? Para sair antes que um número ainda maior de pessoas quisesse vir à tiracolo. Já vimos isso com refugiados no Vietnã, na Coreia, e em outros países de onde os EUA retiraram seus militares: as pessoas que puseram suas vidas em risco simplesmente por trabalharem para as forças estrangeiras que ocupam seus países querem sair junto e, em muitos casos no passado, conseguiram. O Ocidente tem o dever de conceder aos afegãos status de refugiado, cidadania, deve recebê-los. Seria um custo muito baixo a se pagar, mas estão preocupados com a oposição interna de grupos de extrema direita. Se esse é o problema, então não façam mais guerras ou levem em conta que, toda vez que houver um combate no exterior, vai haver refugiados.
Na última semana, Rússia, China, Paquistão e Irã deram claros sinais de que estão dispostos a trabalhar com o Talibã. Qual é o cenário regional que o senhor espera ver com a saída americana?
Algo extremamente importante que aconteceu é que o Talibã efetivamente reconheceu a China como a principal potência com quem devem ter uma boa relação, sob o guarda-chuva de quem desejam buscar proteção. O chanceler chinês recebeu uma delegação da alta cúpula talibã em julho para uma reunião na qual todas essas coisas foram acertadas. Os detalhes não vieram a público, mas está claro, pelo tom da imprensa estatal chinesa, que o Talibã concordou em garantir que o Afeganistão não será usado como terreno para ataques terroristas em nenhum país, que terá boas relações comerciais com Pequim e países vizinhos. Tudo isso será facilitado pela muito antiga relação do Paquistão com os chineses, que vem da década de 1960. Islamabad terá um papel-chave para cimentar estes elos e mediar possíveis tensões entre a China ou o Irã e o Talibã.
E como fica a relação com o Irã?
Um acordo com o Irã é crucial porque, quando os EUA invadiram o Afeganistão em 2001, tiveram o apoio iraniano. Hoje, perante as tensões e provocações americanas contra Teerã, isso está fora de cogitação. Representantes do Talibã já estão conversando, de alguma maneira, com Teerã, ao que tudo indica. E uma proximidade entre eles é fundamental para que haja uma trégua na violência do Talibã contra o povo hazara, os embates entre sunitas e xiitas, para que não haja uma nova guerra civil no Afeganistão e progressos aconteçam. Se isso vai ocorrer, eu não sei, mas os sinais até aqui não são tão ruins.
Está claro há anos que o foco estratégico da política externa americana volta-se cada vez para a China, mas a saída do Afeganistão escanteia de vez a Ásia Central e o Oriente Médio. Qual o senhor crê que será o impacto desta mudança?
A estrutura social da Síria está completamente destruída, a Líbia é um país dividido em três, em condições lamentáveis. Então a guerra ao terror transformou o que era, gostemos ou não, um grupo de países estáveis em Estados falidos e instáveis. A questão agora é, o que os americanos vão fazer para mostrar para o mundo e para si mesmos que ainda são fortes e poderosos? Porque, não há dúvidas, o que nós vimos foi um pesado golpe ideológico e político para os Estados Unidos. O mais conveniente seria algum embate manufaturado com a China, enviar destroyers para o Mar do Sul da China, ameaças com mísseis. Mas um confronto militar poderia ser perigoso, muito perigoso.
Há dois fatores-chave por trás da piora das relações com a China: o primeiro é que Pequim é hoje vista pelos EUA como uma grande rival econômica. A outra razão é que os chineses, especialmente sob o comando de Xi Jinping, não aceitam mais a política externa americana como na época de Deng Xiaoping e outros líderes que, de modo geral, não desafiaram a política externa americana e até a apoiavam na África e no Sudeste Asiático. Isso chegou ao fim, eu diria, há vários anos, e agora a China denuncia abertamente agressões americanas, desafiando as ações dos EUA em muitas partes do planeta e não endossando os americanos no Conselho de Segurança, por exemplo. É a combinação de força econômica e rompimento político que irrita os americanos e os levaram a mirar na China.
O outro plano é óbvio, é cercar a China com bases militares americanas, o que estão fazendo na Austrália, por exemplo, e esperar que os gastos militares chineses desencadeiem uma crise econômica. Pequim investe muito na construção de uma Marinha, o que considera ser extremamente importante, e na renovação da sua Força Aérea, mas não da mesma maneira que os russos fizeram nos anos 1980 e 1990. Eles estão agindo com muita inteligência, mas é algo que devemos olhar de perto.
Vinte anos depois, como a História olhará para a ‘guerra ao terror’?
Como atos brutais e grosseiros de imperialismo, a destruição do mundo árabe e a derrota no Afeganistão. O que começou com a invasão, a primeira resposta ao 11 de setembro de 2001, é uma derrota às vésperas do 20o aniversário dos atentados. A Guerra do Iraque foi um desastre completo para os Estados Unidos, mas eles destruíram um país. Não se pode dizer que alguém saiu vencedor nestas circunstâncias. O povo iraquiano perdeu. Eles destruíram a Síria, mas não conseguiram tomar Damasco. Eles ameaçaram o Irã, o sancionaram, mas não conseguiram tomar Teerã. O saldo é essencialmente de mortes e destruição, e muito pouca vantagem política para os Estados Unidos. O que os líderes americanos estavam dizendo há duas décadas era “vamos usam os ataques para impor a hegemonia dos EUA, se necessário à força, em diferentes partes do mundo”, e isso agora explodiu nos seus rostos. Washington vai marcar o 20º aniversário dizendo, “nós matamos Osama Bin Laden”, mas afirmar que tudo depende de um único homem é uma piada completa, como o Afeganistão nos mostra hoje.
O que o senhor crê que podemos esperar do Talibã daqui para a frente?
Não se julga políticos pelo que dizem, mas pelo que fazem, então vamos aguardar um seis meses até que possamos ter um balanço concreto do regime do Talibã, mas não estou muito otimista. Acho, contudo, que estamos em uma posição um pouco diferente da que há 25 anos. O Afeganistão tem uma população muito jovem, com idade média entre 18 e 20 anos, mais de 60% da população tem menos de 25 anos. O fato de serem jovens, por si só, não significa nada, mas é um mundo muito diferente: há a internet, celulares, você pode ver um filme no telefone e ninguém tem como te parar. Isso teve um impacto na juventude, que hoje pensa mais criativa e abertamente sobre o que precisa fazer para o país. A única coisa sobre a qual todos concordam é que ninguém precisa mais de violência. É necessário um longo tempo de paz para que o Afeganistão possa ser reconstruído.