Descolonizando o multilateralismo: o jeito BRICS de fazer política internacional

Um dos pilares da política externa do BRICS tem sido o de "descolonizar o multilateralismo". Ao mesmo tempo, o grupo tem investido em reformar as principais instituições de governança global, rumo a um compromisso de inclusão dos países emergentes em seus processos de tomada de decisão.

(Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Hoje a voz do BRICS tem um peso estratégico muito maior do que em 2009, quando foi criado, devido à recente expansão do grupo, acordado durante a 15ª cúpula, na África do Sul, que agora inclui Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã. Com isso, o BRICS inegavelmente ganha força em sua defesa do multilateralismo nas relações internacionais, conceito esse que tem sofrido um grande revés, sobretudo em função das crises atuais no Leste Europeu e no Oriente Médio. Mudanças na configuração do poder global, rivalidades geopolíticas entre a Eurásia e o eixo atlanticista, bem como a ressurgência de nacionalismos extremados em vários lugares do mundo, fizeram de nossos tempos contemporâneos um dos períodos mais imprevisíveis e perigosos de toda a história. É necessária, portanto, uma reforma urgente do sistema ONU, que já se mostrou ineficiente num contexto geopolítico em rápida evolução. Ora, tanto as Nações Unidas como seu Conselho de Segurança, responsável por manter a paz e a segurança internacionais, de fato não têm funcionado a contento. Aliás, muito longe disso. O BRICS, por sua vez, tem sido a principal voz da chamada “maioria global” a pedir mudanças nesses mecanismos, o que aumenta ainda mais a sua importância no contexto atual.

Nesse ínterim, o multilateralismo defendido pelo BRICS é justamente um dos pilares fundamentais para restabelecer a ordem do pós-guerra, além de outros conceitos importantes, como a indivisibilidade da segurança internacional, a não intervenção nos assuntos internos dos Estados, o respeito à integridade territorial e a solução pacífica dos conflitos.

No entanto, apesar de muitos outros países também defenderem esses ideais, o Ocidente e seu internacionalismo liberal manifestado pela famigerada “ordem mundial baseada em regras” tornou-se um grande impeditivo para a consolidação de um mundo mais justo e equitativo. Afinal, a própria rede ocidental de instituições multilaterais (como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) transformou-se em uma plataforma de chantagem política. Vide o sequestro dos ativos russos em 2022, ocorrido após o início da operação militar especial.

O perigo dessas atitudes, por sua vez, reside na perda de legitimidade dessas instituições multilaterais, algo que já vem acontecendo com a própria ONU, como já mencionado. O pior de tudo é que: se olharmos para a história, vemos que quando grandes organizações internacionais perdem legitimidade, vide o caso da antiga Liga das Nações no começo do século XX, o mundo fica cada vez mais próximo de uma guerra de grandes proporções. Nós ainda vivemos numa ordem que foi gerada a partir de um cenário de pós-guerra. Trata-se justamente de uma ordem que foi moldada pelas “potências vitoriosas” do conflito que, em comum acordo, levou à formação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas que também contribuiu para a criação das chamadas instituições de Bretton Woods. Entretanto quase 80 anos se passaram desde então, e hoje o BRICS busca reformas nesses mecanismos de governança global, de forma a torná-los mais inclusivos e a fim de dar maior voz aos países emergentes em seus processos de tomada de decisão. Em suma, a questão principal envolve fazer dessa ordem atual uma ordem mais representativa das realidades de nosso século XXI.

Hoje muitos países em desenvolvimento ainda se sentem impotentes ao firmarem acordos econômicos com o G7, por exemplo, ou então quando tentam avançar suas demandas perante o Conselho de Segurança. Para além disso, a tal “ordem mundial baseada em regras” da qual o Ocidente tanto se orgulha trata-se apenas de uma cortina de fumaça para que esse mesmo Ocidente possa agir livremente dentro do sistema, intervindo (econômica, política e militarmente) nos assuntos internos dos Estados. Ao mesmo tempo, a única regra que é obedecida pelas potências ocidentais é a regra do atendimento de seus interesses egoístas, nem que para isso seja necessário desrespeitar o direito internacional ou mesmo a Carta da ONU. Essa é a fórmula do unilateralismo do Ocidente, agir sem consultar ninguém e sem considerar outros povos e civilizações como parceiros de igual importância.

A abordagem do BRICS, por outro lado, vai completamente na contramão dessa tendência, enfatizando o multilateralismo nas relações internacionais, ponto focal e a mais poderosa força motriz por trás da ampliação do grupo ao longo dos últimos anos. A política externa dos países do BRICS, ademais, sempre procurou priorizar relações de ganho mútuo, assim como a não imposição de agendas por parte de uma liderança hegemônica a todos os demais membros do grupo, como ocorre na relação dos Estados Unidos com os países do G7 e da OTAN, por exemplo. Uma das mais importantes funções do BRICS, portanto, é justamente dotar seus participantes de um maior senso de igualdade no âmbito do agrupamento, sem que um país necessariamente prevaleça sobre o restante.

Diante desse cenário, o mundo assiste à acelerada formação de uma ordem multipolar mais justa, ligada ao fortalecimento e à ampliação do BRICS e que promete mudar o quadro geopolítico internacional de forma significativa nas décadas seguintes. Esses avanços fazem do grupo um verdadeiro contrapeso à hegemonia dos Estados Unidos e de seus aliados ocidentais nas relações internacionais, o que se trata de um momento inédito para o mundo. Este momento, portanto, representa a celebração do reconhecimento que os países emergentes obtiveram ao longo dos últimos anos, em sua transição de “subalternos” ao Ocidente para a de atores cuja voz já não pode mais ser ignorada. Enquanto isso, o BRICS vai “descolonizando o multilateralismo“, tornando-o mais inclusivo e acolhendo de bom grado a valiosa contribuição de diversos povos e civilizações para esse processo.

As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.

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