Como a China vê a escalada americana na Ásia e no Pacífico

Para Pequim, acordo de defesa entre EUA, Reino Unido e Austrália é perigo real e tenta cercar sua Marinha quando ela acelerava presença na região. Chineses, porém, também enxergam acenos para evitar confronto, como libertação de diretora da Huawei

PEQUIM — Por trás de uma sigla com ares de filme de James Bond está a mais recente fonte de tensão entre Estados Unidos e China. Aukus, o pacto de defesa entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos anunciado em 15 de setembro, amplia a dimensão militar de uma rivalidade geopolítica que até agora estava mais concentrada em comércio e tecnologia.

A aliança trilateral prevê uma série de colaborações diplomáticas e tecnológicas, mas no cerne do acordo está a cessão de tecnologia para que a Austrália possa contar com uma frota de submarinos de propulsão nuclear. Pode parecer pouco, mas não é. Os submarinos nucleares, ao contrário dos movidos a diesel, podem ficar no fundo do mar até acabarem os mantimentos da tripulação.

Foi a ação mais frontal para deter a expansão da China tomada pelos americanos desde a posse do presidente Joe Biden, no início deste ano. Na apresentação do Aukus (iniciais dos três países em inglês), a China não foi mencionada, mas ficou claro que ela era o alvo das preocupações. Biden chegou a insinuar um paralelo entre a China e os inimigos que os três países enfrentaram juntos no passado, como a Alemanha de Adolf Hitler, ao dizer que o tratado servirá para “atualizar e aumentar nossa capacidade comum para encarar as ameaças do século XXI assim como fizemos no século XX”.

Recado entendido

Para a China, o pacto foi a confirmação de que a prioridade estratégica de Biden é preservar a hegemonia americana no Pacífico. Há centenas de bases dos EUA em torno da China — só no Japão são 120. Em breve, haverá mais pessoal e equipamentos americanos na Austrália para cuidar da manutenção dos submarinos nucleares. Antes do Aukus, os EUA só haviam compartilhado tal tecnologia uma única vez, com o Reino Unido, para conter a influência soviética na Europa durante a Guerra Fria.

Presença militar dos EUA nos arredores da China Foto: Editoria de Arte
Presença militar dos EUA nos arredores da China Foto: Editoria de Arte

A expectativa é de que os primeiros dos oito submarinos que a Austrália construirá com ajuda americana e britânica não fiquem prontos antes de 2030. Porém, para o equilíbrio de defesa regional, sua presença na periferia marítima da China tem o poder de mudar o jogo. É um instrumento de dissuasão concreto contra a expansão da Marinha chinesa, que nos últimos anos tem agido com mais assertividade no Mar do Sul da China e já tem mais navios de guerra que os Estados Unidos — 360 contra 297, segundo um relatório do Congresso americano.

— Esses submarinos representam um perigo real e é evidente que têm como alvo não a defesa da Austrália, mas a China — disse o ex-diplomata Wang Yiwei, diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Renmin, uma das principais da China.

Para Pequim, poderia haver uma divisão do Pacífico, com a coexistência entre forças americanas e chinesas, mas isso não é algo aceitável para os Estados Unidos, que não abrem mão de manter a primazia na região. Essa é a leitura do analista Andy Mok, do Centro de China e Globalização, em Pequim.

— O problema é a forma com que os Estados Unidos definem sua segurança nacional, cujo perímetro vai até a costa da China. Os assessores de Biden justificam o Aukus dizendo que os Estados Unidos trabalham melhor com aliados. Outra forma de ver isso é que os Estados Unidos, sozinhos, não são fortes o suficiente para resistir à China. Precisam de ajuda — disse Mok.

Canguru no radar

O governo chinês foi até relativamente comedido em sua resposta, com ameaças apenas veladas de resposta militar, mas deixou a imprensa oficial ser bem mais incisiva. Victor Gao, que foi tradutor do líder chinês Deng Xiaoping e é professor de Relações Internacionais da Universidade de Suzhou, disse à TV estatal que, ao se unir ao Aukus, a Austrália se tornou alvo de um ataque nuclear. Segundo ele, não dá para acreditar que os submarinos não serão municiados de armas nucleares, como dizem os integrantes do pacto.

Enquanto os Estados Unidos consolidavam uma nova parceria militar, a China respondeu com um aceno a novas alianças econômicas. Um dia após o anúncio do Aukus, Pequim submeteu formalmente um pedido de adesão à Parceria Transpacífico.

Uma ironia para quem se lembra que o tratado comercial era a peça central da política externa do governo de Barack Obama na Ásia, justamente para conter a China. Na época, o secretário de Defesa chegou a dizer que a aprovação do acordo era tão importante para a segurança do país quanto ter mais um porta-aviões. Donald Trump retirou os Estados Unidos do tratado logo em sua primeira semana na Casa Branca, e agora a China busca ocupar mais o espaço.

Quando Biden tomou posse, havia a expectativa de uma distensão entre os EUA e a China, após os anos turbulentos da era Trump. Hoje, o consenso entre analistas chineses é de que há mais continuidade do que ruptura. O governo americano continua vendo a China como uma ameaça estratégica. O tom é menos estridente, e a visão é mais ampla, como uma corrida de longa distância.

Algumas concessões recentes ajudaram a melhorar o clima entre os dois países, como a libertação da diretora financeira da Huawei, Meng Wanzhou, detida no Canadá desde 2018 por força de um pedido de extradição americano. Outra acomodação foi o sinal verde para a compra de chips fabricados nos Estados Unidos para componentes automotivos pela Huawei, que era alvo de sanções aplicadas no governo Trump.

Questão de Taiwan

Está prevista uma reunião virtual ainda este ano entre Biden e o presidente chinês, Xi Jinping, e segundo Pequim os preparativos têm mostrado progresso. A conversa será importante para retomar o diálogo estratégico no mais alto nível entre as duas maiores economias do mundo, praticamente suspenso por Trump, e estabelecer mecanismos para evitar incidentes que possam levar a um confronto militar.

Um dos temas mais sensíveis nesse sentido é Taiwan, que a China considera uma província rebelde e é uma aliada dos Estados Unidos. As tensões em torno da ilha voltaram a aflorar nos últimos dias, mas os principais especialistas no assunto consideram remota a possibilidade de uma invasão chinesa em médio prazo, apesar da retórica nacionalista de Xi.

Para Shelley Rigger, especialista em Taiwan da Universidade Brown, a falta de comunicação é um dos fatores adicionais de fricção no anúncio do pacto Aukus, já que ele pegou de surpresa a China e reforçou no país a impressão de que o governo americano não leva em consideração seus interesses.

— Os Estados Unidos dizem que o Aukus é para defender o Pacífico de agressões chinesas, mas para a China parece um meio de cercá-la. As duas posições são totalmente compreensíveis — diz Rigger.

Negócios à parte

Fora do radar militar, porém, os laços econômicos dão outro sinal de que nem tudo é confronto entre Estados Unidos e China, e há áreas de benefício mútuo. No primeiro semestre deste ano, o comércio bilateral cresceu 45,7% em relação ao mesmo período de 2020, o maior aumento entre os parceiros comerciais da China. E, numa pesquisa entre os membros da Câmara de Comércio Americana de Xangai, 72% disseram que estão otimistas em relação a seus negócios e não pensam em transferir suas operações para outros países.

E o Brasil com isso?

Segundo Marcos Cordeiro Pires, professor de Economia Política Internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Marília, o Brasil precisa ter uma visão de longo prazo da rivalidade entre China e Estados Unidos. A competição entre as duas potências põe o Brasil numa posição difícil, pois, de um lado, existem fortes vínculos culturais, políticos e financeiros com os Estados Unidos e, de outro, há uma grande dependência comercial em relação à China. Diante disso, o ideal seria o Brasil agir de forma pragmática e equidistante, com uma estratégia capaz de obter vantagens de ambos os lados, como investimentos em infraestrutura, acredita Cordeiro Pires.

O Aukus tem sido visto como uma mudança estrutural da geopolítica mundial, resultado do novo equilíbrio de forças criado com a ascensão da China e o ímpeto dos EUA em conter a expansão do poderio militar chinês na Ásia-Pacífico. Para Alexander Drivas, do Instituto de Estudos Europeus e Americanos, também é sinal de uma nova era de multipolaridade, deixando para trás o período em que os Estados Unidos se mantiveram como a única superpotência após o colapso da União Soviética.

A escolha de lados será mais “granular” e não tão categórica como na Guerra Fria, o que tornará a diplomacia bem mais complexa, pensa Andy Mok. De certa forma, o momento lembra um retorno ao modelo da Europa no século XIX, com múltiplos centros de poder.

C’est la vie

A China não foi a única a ser pega de surpresa pelo pacto militar alinhavado em sigilo. Embora Biden tenha exaltado o Aukus pela importância das alianças para os EUA, uma de suas consequências foi humilhar a França, um dos aliados mais antigos de Washington. Sentindo-se traído com o cancelamento de um acordo de US$ 66 bilhões para fornecer submarinos a diesel à Austrália, o governo francês chamou de volta seus embaixadores em Camberra e Washington.

A divisão entre os aliados foi um presente inesperado para a China, e a quebra de confiança ganhou destaque na imprensa estatal. Apesar das promessas de Biden de retornar ao multilateralismo e à cooperação com seus aliados, “sua administração está conspirando uma bizarra guinada na direção contrária”, espetou o jornal Global Times.

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