O encontro no Conselho de Direitos Humanos da ONU ainda foi transformado em uma demonstração das divisões entre as principais potências internacionais.
A sessão foi convocada para aprovar uma resolução que concederia um mandato para a ONU poder investigar e monitorar os crimes cometidos pelo grupo fundamentalista. Mas, sem um acordo, o projeto de resolução não especifica de que maneira esse processo ocorreria e nem se um mecanismo especial seria criado.
O texto apenas pede que a ONU monitore a situação, sem criar uma comissão de inquérito ou estabelecer um painel com especialistas que possam pedir acesso ao país e fazer um levantamento dos crimes. Crises como a da Síria, Mianmar, Burundi, Venezuela, El Salvador e tantas outras contam com comissões de inquérito criadas explicitamente para apurar violações de direitos humanos, o que não aconteceu desta vez com o Afeganistão.
Considerada como aguada, a resolução foi aprovada por consenso. Mas foi alvo de duras críticas por parte de ativistas de direitos humanos, tanto dentro do Afeganistão como fora.
Sem a perspectiva de uma resolução forte, a Comissão de Direitos Humanos do Afeganistão acusou a comunidade internacional de estar “falhando” na proteção da população afegã e fez duras críticas contra os governos estrangeiros por “não agir”.
Nasir Andisha, um diplomata ainda representando na ONU o governo deposto do Afeganistão, tomou a palavra para pedir que houvesse um consenso internacional para pressionar o Talibã a respeitar o direito internacional. Segundo ele, “milhões” de afegãos hoje estão ameaçados.
A entidade Human Rights Watch foi dura. “Essa resolução é mais um insulto que uma resposta”, disse. Para a ong, os governos não criaram “nada novo”, já que a ONU já têm a função de monitorar eventuais violações de direitos humanos. “Como vocês vão explicar às famílias das vítimas?”, questionou a entidade, num discurso durante o debate.
Outras ongs ainda apontaram como o texto colocado ao voto sequer condena a violência por parte do Talibã.
A própria UE deixou claro a sua,insatisfação, indicando que não via sentido num documento que sequer condenava os atos do grupo islâmico. Mas optou por não votar contra o documento.
Troca de farpas
A falta de uma ação mais clara foi resultado de um impasse entre potências e países vizinhos ao Afeganistão sobre como tratar a queda de Cabul. China, Rússia e Paquistão, além de Irã, Cuba e Venezuela eram contrários a uma ação mais dura.
O governo americano não faz parte do Conselho de Direitos Humanos como membro pleno. Mas, ainda assim, atuou nas negociações do texto final e pressionou seus aliados dentro do órgão para defender sua posição.
Longe de um entendimento, a reunião na ONU deixou claro que não existe um consenso sobre o Talibã. O governo da China não deu sua chancela para a convocação do encontro e tampouco apoiou a ideia de um mecanismo de investigação.
Pequim insistiu que o Talibã já teria dado demonstrações de que está disposto a formar um governo com diferentes atores e que irá proteger os direitos de mulheres e meninas. Os chineses, num discurso duro, optaram por criticar os governos dos EUA. Reino Unido e Austrália pela ocupação militar dos últimos anos. “Eles precisam ser responsabilizados”, disse a delegação de Pequim. Para a China, o caos atual deve servir como “lição” ao Ocidente.
“Os EUA, Reino Unido, Austrália e outros países devem ser responsabilizados pela violação dos direitos humanos cometida pelos seus militares no Afeganistão e essa sessão deve cobrir esta questão”, disse o embaixador da China, Chen Xu.
“Sob a bandeira da democracia e dos direitos humanos, os EUA e outros países realizam intervenções militares em outros estados soberanos e impõem o seu próprio modelo a países com uma história e cultura muito diferentes”, disse. “Isso trouxe grande sofrimento”, afirmou o diplomata.
Pequim já havia assinalado que está disposto a manter relações “amistosas” com o Talibã e, nesta terça-feira, voltou a dar seu apoio em um encontro formal na ONU.
Em resposta, a subsecretária de estado norte-americana, Uzra Zeya, defendeu os avanços dos últimos 20 anos no que se refere aos direitos humanos e insistiu que tais conquistas não podem ser desfeitas.
Ela pediu a proteção da população civil, ativistas e jornalistas. A Casa Branca condenou a violência no país e pediu que todos os afegãos que queiram sair do país sejam autorizados a cruzar as fronteiras. Para os americanos, apenas um acordo político pode colocar fim à crise.
O governo brasileiro também tomou a palavra durante o encontro e defendeu que a resolução a ser votada ainda no dia de hoje seja mais robusta no que se refere à criação de um mecanismo de investigação e monitoramento.
O Itamaraty alertou que está preocupado especialmente com a situação de mulheres, ativistas e minorias religiosas. Para o governo brasileiro, os avanços em direitos humanos dos últimos anos não podem ser desfeitos.
Já Venezuela e Irã criticaram os americanos, enquanto o governo de Cuba também optou por usar a reunião para denunciar os EUA. “Os americanos são diretamente responsáveis por essa situação”, disse a delegação de Havana. “Em 20 anos, 100 mil civis morreram ou ficaram feridos. Não vamos parar o terrorismo com bombas”, alertou. “Sem que os americanos agiram para promover a democracia, caos e mortes prevaleceram”, disse.
Crimes cometidos, inclusive contra mulheres
A avaliação da China sobre a confiança na palavra do Talibã, porém, não é compartilhada pela ONU que confirmou que o avanço do grupo pelo Afeganistão foi permeado por crimes e pediu que a comunidade internacional estabeleça um mecanismo formal para monitorar o grupo fundamentalista e suas promessas.
Na abertura do encontro, coube à Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, fazer um raio-x da situação no país. Sua constatação: crimes foram cometidos e mulheres e meninas foram já alvo de limitações impostas pelo Talibã, além de execuções sumárias, tortura e atos contra a liberdade de expressão.
Os dados se contrastam com as promessas do grupo que, ao tomar Cabul, insistiu que não haveria nem vingança e que os direitos das mulheres estariam garantidos.
Antes da votação, Bachelet fez um apelo para que houvesse um consenso internacional para que a ONU pudesse realizar suas investigações. Mas seu pedido não foi atendido.