Uma silenciosa, mas poderosa reconfiguração está em andamento nos mercados financeiros globais — e começa pela Ásia. Uma onda de valorização das moedas asiáticas frente ao dólar dos Estados Unidos reacendeu os alertas sobre a hegemonia da moeda americana. O movimento ganhou tração com a disparada do dólar taiwanês nos últimos dias e já se espalha por países como China, Coreia do Sul, Singapura, Malásia e Hong Kong.
O cenário contrasta fortemente com o trauma da crise asiática de 1997. Desta vez, a pressão cambial está na direção oposta: não se trata de uma fuga de capitais da região, mas da retirada de recursos de ativos denominados em dólar, em um gesto que muitos analistas interpretam como o início de uma nova fase de desdolarização.
“Para mim, isso tem todo o aspecto de uma ‘crise asiática às avessas’”, avaliou Louis-Vincent Gave, sócio-fundador da Gavekal Research. A comparação com o colapso dos anos 1990 deixa claro que, agora, é o dólar que está na berlinda, e não as economias emergentes.
Tarifas de Trump e insegurança com ativos dos EUA aceleram mudança
Analistas apontam como fator central o impacto das políticas agressivas de Donald Trump, que voltou a ameaçar parceiros comerciais com tarifas — principalmente a China. As medidas reduziram a confiança de investidores asiáticos nos ativos americanos e desencadearam uma reavaliação do destino dos superávits comerciais da região, historicamente aplicados em Treasuries dos EUA.
“Desde a crise asiática, a poupança da região tem sido canalizada para o Tesouro americano. De repente, essa lógica está sendo questionada”, disse Gave. Gary Ng, economista da Natixis, reforça: “As políticas de Trump corroeram a credibilidade do dólar no mercado internacional”.
Em meio a rumores de bastidores sobre um possível “acordo de Mar-a-Lago” — estratégia hipotética para enfraquecer o dólar — o Escritório de Comércio de Taiwan negou qualquer pacto cambial com Washington. Mas os dados falam por si.
Reservas em dólar começam a recuar
Nos bancos chineses, os depósitos em moedas estrangeiras, principalmente dólares, somavam quase US$ 960 bilhões até o fim de março — maior nível em três anos. Mas o fluxo começa a mudar. Segundo o UBS, se seguradoras taiwanesas ajustarem sua proteção cambial aos níveis médios dos últimos anos, isso pode gerar a venda de até US$ 70 bilhões em ativos em dólar.
Operações massivas de investidores em Hong Kong, baseadas em forwards cambiais considerados estáveis, também começaram a ser desfeitas. “Essas operações movimentam centenas de bilhões de dólares e estão sendo desmontadas”, revelou Mukesh Dave, diretor da Aravali Asset Management.
O banco central de Hong Kong confirmou a redução do prazo médio de seus investimentos em Treasuries e o avanço na diversificação cambial.
O dólar começa a perder terreno — e confiança
A desdolarização ganhou um impulso extra com o novo pacote de tarifas anunciado por Trump em abril. Segundo Robin Xing, economista-chefe do Morgan Stanley para a China, esse foi o “chamado de alerta” que faltava para acelerar a busca por alternativas.
“Abandonar a ideia da supremacia do dólar já não é mais tabu”, afirmou. Parisha Saimbi, estrategista do BNP Paribas, observa que a repatriação de recursos da Ásia está se tornando realidade. “Independentemente da forma que tome, isso mostra que o suporte ao dólar está enfraquecendo.”
Mesmo com as autoridades monetárias tentando conter o movimento — como o Banco Central de Taiwan prometendo estabilizar o câmbio e a presidente Tsai Ing-wen negando qualquer relação com Washington — os mercados parecem já ter dado seu veredito.
“O par dólar-taiwanês é o canário na mina”, disse Brent Donnelly, da Spectra Markets. “A demanda asiática por dólares e o interesse dos bancos centrais da região em sustentá-lo estão claramente diminuindo.”