As tensões no Mar do Sul da China voltaram a crescer nas últimas semanas. No começo de abril, Estados Unidos, Japão, Austrália e Filipinas realizaram pela primeira vez exercícios navais conjuntos nessa região. Em comunicado, os países afirmaram que os exercícios demostram “compromisso coletivo de reforçar a cooperação regional e internacional em apoio a um Indo-Pacífico livre e aberto”.
A noção de “Indo-Pacífico” promovida pelos Estados Unidos, refere-se à combinação dos países presentes nos oceanos Índico e Pacífico, e é contestada pela China (mais sobre isso adiante).
Poucos dias depois dos exercícios, os presidentes dos EUA, Japão e Filipinas realizaram uma cúpula inédita entre esses três países na Casa Branca, em Washington, que resultou em um acordo de cooperação em diversas áreas, e a promessa de um investimento de 8 milhões para infraestrutura de comunicação nas Filipinas.
Em reunião no Pentágono, durante a mesma viagem, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, disse ao presidente Ferdinand Marcos Jr., que Biden quer a aprovação pelo Congresso de 128 milhões de dólares para projetos militares nas Filipinas. O presidente filipino, Ferdinand Marcos Jr. expressou que o acordo inédito “deve mudar a dinâmica em torno do Mar do Sul da China”.
A pesquisadora filipina da Iniciativa de Sondagem do Mar do Sul da China, Anna Rosario Malindog-Uy, afirma que a estratégia estadunidense gera “uma atmosfera de nova Guerra Fria que vem impactando negativamente entre os países da região”.
“Tenho muito medo de sermos a próxima Ucrânia ou talvez já estejamos sendo um candidato à ‘nova Ucrânia’ na Ásia. E é muito perigoso para o meu país. Nós nunca nos beneficiaremos de tudo isto, não está no nosso interesse nacional, porque o interesse nacional do meu país é o desenvolvimento econômico, a paz e a preservação da nossa integridade e a soberania nacional”.
As Filipinas foram colônia dos Estados Unidos durante 48 anos, de 1898 até 1946. Durante a Segunda Guerra, e antes da independência, o Japão também ocupou as Filipinas durante 3 anos.
“Somos como uma semi-colônia ou estamos voltando novamente à Idade das Trevas da nossa história que foi a colonização pelos Estados Unidos? Isto é uma colonização 2.0 do meu país pelos Estados Unidos? E o que é pior, com o Japão. Nós já fomos colonizados pelo Japão antes”, questiona Malindog-Uy.
Direitos Marítimos
As Filipinas reivindicam direitos marítimos sobre uma parte desse mar que é considerada pela China como território próprio. A pesquisadora afirma que a reivindicação filipina é baseada na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM).
“O que nós dizemos é que a 200 milhas náuticas [370 Km] das nossas águas territoriais, temos direitos econômicos exclusivos”, explica Malindog-Uy, que também é vice-presidenta de Assuntos Externos do Instituto de Estudos Estratégicos das Filipinas.
Essa área chamada Zona Econômica Exclusiva (ZEE) está prevista na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. “Mas o problema é que a nossa ZEE se sobrepõe às reivindicações da China e a reivindicação da China é maior, porque a reivindicação é de soberania. Quer dizer: são suas águas territoriais, fazem parte da sua soberania. Então, dado este tipo de situação, com sobreposição de reivindicações marítimas e territoriais, toda a disputa torna-se muito complicada”, aponta a especialista.
Em 2016, o Tribunal Internacional de Haia, em resposta a um processo aberto pelas Filipinas em 2013, declarou-se favorável à reivindicação filipina. A China se recusou a reconhecer a sentença, e afirmou que seguiria o caminho das negociações bilaterais para resolver a disputa.
A reivindicação chinesa no Mar do Sul da China é representada pela linha de nove traços, publicada originalmente em 1947 (antes da Revolução), como linha de onze traços. A reivindicação foi reduzida na área do golfo do Tonquim, sob o governo de Mao, em 1957, em favor do Vietnã, passando a ser linha de nove traços.
As divergências com as Filipinas são históricas, mas o teor da disputa mudou sob a administração de Ferdinand Marcos Jr., que alguns meses depois de assumir a presidência das Filipinas deu acesso a quatro novas bases militares aos Estados Unidos, totalizando agora 9 bases nesse país.
Para a professora Malindog-Uy, seu país se distanciou da abordagem diplomática de outros países da região como Brunei, Malásia e Vietnã, que também têm disputas com a China no mar, mas seguem a linha do diálogo com o gigante asiático. Ela atribui essa mudança ao fato de seu país ter se tornado uma peça na mudança de estratégia global dos Estados Unidos.
“Os Estados Unidos estavam no Oriente Médio. Quando os EUA saem derrotados do Oriente Médio, traçam uma estratégia de redirecionamento voltada para a Ásia. Houve uma transferência de recursos militares e de tropas militares do Oriente Médio para a região Ásia-Pacífico”, explica.
Ela afirma que a motivação central dessa estratégia do “Indo-Pacífico” dos EUA tem a ver com uma estratégia de contenção da China. “EUA quer conter a ascensão da China, seu desenvolvimento como economia, como potência militar, também quer controlar politicamente a influência crescente da China na região. É por isso que a estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos está agora operacional na região Ásia-Pacífico”, diz.
“Indo-Pacífico”
Em 2015 um video que reunia diversos trechos do então candidato Donald Trump dizendo “China” em seus discursos da campanha, viralizou. O fato simbolizava o crescente posicionamento dos EUA em relação à China. Ainda durante a campanha que o levou à presidência, Trump afirmou: “Estamos sendo destroçados por muitos países, sendo a China o agressor número 1”.
O teor de Trump contra a China se intensificou, mas a estratégia geral envolvendo a China já havia sido iniciada antes, especialmente durante as gestões de Barack Obama, com o Pivot To Asia (Redirecionamento para Ásia). Ao mesmo tempo, começavam as investigações que resultariam em banimentos de empresas chinesas nos EUA, como a ZTE.
Em 2012, o secretário de Defesa da administração Obama, Leon Panetta, anunciou: “Nos próximos anos aumentaremos o número e a dimensão dos nossos exercícios no Pacífico, também aumentaremos e distribuiremos mais amplamente as nossas visitas portuárias, incluindo a importante região do oceano Índico”. Ele fez a afirmação no Diálogo Shangri-la, o maior fórum militar da região Ásia-Pacífico. Panetta especificou que, até 2020, a Marinha estadunidense passaria de ter suas forças distribuídas igualmente entre o Pacífico e o Atlântico, para uma divisão de cerca de 60%-40%.
Em seu primeiro ano do governo Trump, diversas agências e departamentos foram instruídas a trabalharem com parceiros sob a ideia de um “Indo-Pacífico livre e aberto”. Nesse ano, durante a cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC, em inglês), o então presidente afirmou, sem mencionar a China, que os EUA não tolerariam mais “ataques cibernéticos, espionagem corporativa ou outras práticas anticompetitivas”.
O discurso contra a China foi se tornando mais assertivo. Em 2019, o governo dos EUA publicou o Relatório de Estratégia Indo-Pacífico, onde afirma que “à medida que a China continua a sua ascensão econômica e militar, procura a hegemonia regional do Indo-Pacífico no curto prazo e, em última análise, preeminência global no longo prazo”.
Durante o governo Trump também foi ressuscitado, em 2017, o Diálogo Quadrilateral de Segurança (Quad) entre Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos, uma iniciativa surgida em 2007 e tida como um dos “legados” do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe.
Os chineses rejeitam a ideia de Indo-Pacífico. “Não existe um conceito como o de Indo-Pacífico”, é uma criação dos Estados Unidos para atrair parceiros como a Índia para ‘conter’ a China, disse o diplomata chinês, Lu Shaye, ao jornal The Hindu, há dois anos atrás.
Anna Rosario concorda, e diz que os Estados Unidos estão tentando motivar seus aliados tradicionais de muitas maneiras, “e também tentando forjar esse tipo de arquitetura de segurança que é centrada nos EUA”. Nesse sentido, ela lembra do mecanismo de diálogo trilateral entre EUA, Japão e Coreia do Sul (que deverá ter uma reunião em paralelo à cúpula da OTAN que ocorrerá em Washington em julho), o AUKUS (Austrália, EUA e Reino Unido), e o recente mecanismo entre Japão, EUA e Filipinas.
“Se você realmente olhar para toda essa estrutura, tudo isso é a personificação da estratégia indo-específica dos Estados Unidos, militarmente falando, criando uma arquitetura de segurança centrada nos EUA na região indo-pacífica, com o objetivo de conter a China mas, ao mesmo tempo, para ter mais controle na região Ásia-Pacífico. Os Estados Unidos estão preservando a sua hegemonia e predominância nesta região”, argumenta a professora Malindog-Uy.