Nesta semana, a diplomacia da China atuou de forma intensa para evitar a escalada da violência no Oriente Médio, após os ataques retaliatórios do Irã contra o território israelense. Ao reconhecer o direito iraniano à legítima defesa, Pequim destoa do coro ocidental e se posiciona como ator alternativo, acreditam especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
Nesta segunda-feira (15), o ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, realizou conversa telefônica com os seus homólogos iraniano, Hossein Amir-Abdollahian, e saudita, o príncipe Faisal bin Farhan Al Saud. Já o enviado especial do governo chinês para assuntos do Oriente Médio, Zhai Jun, reuniu-se presencialmente com o embaixador de Israel em Pequim, Irit Ben-Abba Vitale.
Nas conversas, a China reiterou a sua condenação aos ataques de Israel a instalações diplomáticas do Irã na Síria, classificando-os de “extremamente cruéis”. Segundo o representante da China nas Nações Unidas, Dai Bing, a ação de Israel é “uma grave violação da Carta da ONU, do direito internacional e da soberania tanto da Síria, quanto do Irã”.
Apesar de a diplomacia chinesa considerar os ataques do Irã contra Israel retaliatórios e limitados, Pequim sugeriu que a ação teria sido suficiente para encerrar as hostilidades.
“Os países e o povo do Oriente Médio não desejam uma guerra, nem podem arcar com um conflito de larga escala”, disse o representante chinês na ONU, Dai Bing.
Em função de seus interesses políticos, econômicos e energéticos na região, a China não tem interesse na eclosão de um conflito de larga escala, apontaram especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
“A China é pragmática, não tem uma política externa messiânica baseada em valores como a dos EUA”, declarou à Sputnik Brasil o coordenador do curso de pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Bruno Hendler. “A China busca a ordem.”
Processos de transição hegemônica, no qual uma grande potência declina em favor de outra, normalmente estão associados a grandes conflitos. No entanto, a transição de poder dos EUA para a China apresenta características diferentes das antecessoras.
“Acadêmicos defendem que nas transições hegemônicas do passado, a potência em ascensão era a interessada na destruição da ordem. Mas, curiosamente, na atual transição de poder de EUA para a China, vemos o contrário: a potência desestabilizadora são os EUA“, apontou Hendler. “Mas esse debate segue em aberto.”
Nesse sentido, a China busca se posicionar como um potencial mediador no Oriente Médio, contrastando com a imagem dos EUA na região, associada a intervenções militares e a alinhamento com Israel.
“A China busca ocupar espaços deixados pelos EUA no Oriente Médio, como o de mediador. A China se coloca como um ator mais neutro e menos contaminado do que os EUA“, disse Hendler. “Mas essa postura chinesa não deixa de atender aos seus interesses econômicos, políticos e de segurança.”
As credenciais diplomáticas chinesas no Oriente Médio são relevantes: a China mediou a reaproximação entre Irã e Arábia Saudita, encerrando décadas de rivalidade que geraram conflitos na região.
“Essa reaproximação protagonizada pela China foi um dos feitos diplomáticos mais importantes da última década”, disse o historiador e doutor em psicologia social pela USP, Marco Fernandes, à Sputnik Brasil. “Sabemos que a Rússia também trabalhou muito nos bastidores por esse acordo, que levou anos para ser costurado.”
Fernandes, que é especialista em assuntos chineses e reside em Pequim, nota que a entrada de Irã e Arábia Saudita no BRICS e na Organização para Cooperação de Xangai (OCX) tiveram como objetivo consolidar a nova correlação de forças no Oriente Médio.
“A China quer aumentar sua influência geopolítica na região e tem interesses estratégicos. Mas não esqueçamos que o que ela mais quer é fazer negócios com o Oriente Médio”, disse Fernandes. “A China precisa da região estável para que os negócios sigam o seu fluxo.”
Pequim atrai cada vez mais capital de fundos de investimentos das monarquias do Golfo, conforme os investimentos de EUA e Europa na economia chinesa retraem. Além disso, a China é o principal parceiro comercial do Irã, absorvendo cerca de 90% das suas exportações de petróleo.
Os laços econômicos com Israel também estão em ascensão: Pequim é o segundo parceiro comercial de Tel Aviv, com fluxo de comércio de US$ 18 bilhões (cerca de R$ 94 bilhões) em 2021.
“As relações com Israel são estreitas. Não só no âmbito comercial, mas também nas esferas de defesa e inteligência”, disse Fernandes. “A China, no seu pragmatismo geopolítico, confia em Israel para cooperar em setores tecnológicos sensíveis.”
Defesa da Palestina
Os interesses econômicos e estratégicos não impedem a China de defender a causa palestina em termos mais incisivos do que muitos de seus pares no Sul Global.
Para a diplomacia chinesa, a causa essencial dos conflitos no Oriente Médio é a questão palestina, que deve ser resolvida pela solução de dois Estados.
“Se permitirmos que as chamas do conflito de Gaza continuem a irradiar, as repercussões adversas vão se alastrar ainda mais, tornando a região ainda mais instável”, disse o representante da China na ONU, Dai Bing. “Não há alternativa à implementação total da solução de dois Estados. É a única forma de encerrar esse ciclo vicioso de uma vez por todas.”
A China deu um passo além e defendeu a legalidade do recurso à luta armada pelos palestinos, durante consulta pública da Corte Internacional de Justiça, realizada em fevereiro.
“Na minha opinião, essa é a maior surpresa na posição chinesa referente ao conflito israelo-palestino”, disse Fernandes. “A China considerou a Palestina um território que está sendo colonizado e, portanto, de acordo com preceitos internacionais reconhecidos, tem direito à resistência armada.”
De fato, o conselheiro jurídico do Ministério das Relações Exteriores da China, Ma Xinmin, declarou perante a mais alta corte da ONU que “o uso da força pelo povo palestino para resistir à opressão externa e alcançar o estabelecimento de um Estado independente é um direito inalienável”. Segundo ele, “neste caso, luta armada não é a mesma coisa que terrorismo”.
Essa interpretação foi reiterada pelo representante da China na ONU, Zhang Jun, que afirmou: “A batalha dos povos pela sua liberação, pelo seu direito à autodeterminação, inclusive a luta armada contra o colonialismo, ocupação, agressão e dominação por parte de forças estrangeiras, não deveria ser considerada atos de terrorismo”.
“A posição é forte e vai contra a ideia de que a China age de forma tímida em assuntos do Oriente Médio”, disse Fernandes. “E difere da posição do Brasil, já que abre caminho para a China questionar se os ataques do Hamas em Israel [no dia 7 de outubro de 2023] seriam, de fato, terrorismo.”
O tom enfático adotado por Pequim, porém, não a distancia do seu objetivo principal de manter canais diplomáticos abertos e evitar um conflito generalizado no Oriente Médio.
“A China está em um momento de avanço diplomático e econômico inédito na região. Um conflito armado somente imporia obstáculos a esse avanço. A guerra generalizada agora pode interessar outros atores. Mas à China, com certeza não”, concluiu o especialista.