Não se trata de uma novidade na história o surgimento e a ascensão de novos polos de poder em detrimento dos existentes. Desde o século XVIII são inúmeros os exemplos de transições na hegemonia internacional que se aceleram com o surgimento do capitalismo industrial na Inglaterra, mais avançado que o capitalismo comercial português e espanhol que dominaram boa parte do mundo durante séculos, notadamente a América Latina. Mesmo a dinâmica capitalista inaugurada pela Inglaterra tem características nada estranha a historiadores econômicos dotados de grande rigor teórico e conceitual. É famosa a descoberta por Lênin do caráter desigual do desenvolvimento das nações e a tendencia dos países mais desenvolvidos em perder dinamismo enquanto outros passam a desfrutar do que Alexander Gerschenkron chamou de “vantagens do atraso”. Assim a ordem internacional não pode ser observada, do ponto de vista da história, como uma marcha onde os países trocam de posições como em uma parada militar. Por exemplo, o surgimento do capitalismo monopolista trouxe consigo à tendência à guerra. Assistimos a duas grandes guerras mundiais onde o centro da disputa era o poder mundial com resultados que consolidaram novos atores políticos no plano internacional, principalmente os EUA.
Nova transição sistêmica
Parto de outro princípio histórico de que se a realidade deu razão a Lênin em relação ao desenvolvimento desigual do sistema e a tendência estagnação nos grandes centros desenvolvidos abrirem espaços de poder no mundo. O mesmo digo que pouco teremos a oferecer de explicação ao futuro sem relacionarmos a transformação dos Estados Unidos em uma economia continental unificada no final do século XIX, e seus impactos sobre o desenvolvimento do sistema capitalista internacional, com o que assistimos na China ao longo das últimas décadas: o surgimento de uma economia continental unificada no terceiro maior país do mundo está gerando impactos sobre a Economia Política Internacional ainda pouco investigados pelos chamados especialistas. Esse é um ponto fundamental quando queremos desenvolver um pensamento sofisticado sobre os BRICS+ e o futuro da ordem internacional. Voltarei a este ponto.
Por outro lado, assistimos hoje a uma nova onda de transição sistêmica. Desta vez com o surgimento de novos polos de poder mundial de um lado e uma potência hegemônica, em estágio acelerado de decomposição política, social, moral e econômica, chamada Estados Unidos da América. Interessante notar que o novo que está surgindo é produto de uma odem criada pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial e que se acelera no final da década de 1970 e o final da União Soviética. A globalização capitaneada pela grande finança dos Estados Unidos foi uma realidade que transformou a geografia econômica do mundo, mas que está se erodindo em meio aos seus próprios limites. Desde o momento em que a financeirização tornou-se a dinâmica dominante de acumulação no capitalismo e o neoliberalismo ganhou corações e mentes mundo afora o mundo entrou em uma espiral de maior instabilidade e imprevisibilidade. Desde a década de 1990 crises financeiras tem se tornado recorrentes na mesma proporção em que países que desenharam projetos nacionais de desenvolvimento fora dos preceitos do Consenso de Washington foram galgando maior espaço no mundo. Curiosamento a China e a Índia, dois países que se tornaram independentes no final da década de 1940, passaram da condição de países miseráveis a grandes economias. Os dois países juntos correspondem hoje a 51% do crescimento econômico do mundo.
Ao lado disso, a Rússia – após uma queda brutal de seu PIB após o final da União Soviética – se recompõe enquanto capitalismo de Estado e potência atômica, energética e miliar – e passa a reocupar espaços perdidos no mundo. Sua crescente integração energética com a Europa e econômica e tecnológica com a China reforça sua posição de poder regional. O Brasil, apesar de seguir uma rota contraditória nos últimos 40 anos conseguiu se impor como país central no hemisfério sul do mundo. O continente africano tem passado nos últimos 20 anos, em grande parte pela presença econômica chinesa em contraponto às antigas potências coloniais, por um novo processo de independência. Novas revoltas anticoloniais como as ocorridas em Burkina Faso, Mali e Niger tendem a se proliferar no continente na mesma proporção em que China e Rússia se apresentam como alternativas progressistas em compração com o Ocidenta nas relações com a África.
A formação do chamado BRICS obedece a esta lógica histórica de funcionamento do capitalismo, com sua tendência ao surgimento cíclico de polos alternativos de poder em relação ao centro dinâmico da economia internacional. Esta tendência acelera-se com a crise financeira internacional de 2008 onde percebe-se a incapacidade dos países capitalistas centrais em manejarem a crise de forma que o impasse criado pela financeirização fosse superado. De forma simultânea surge a tendência de perda de influência dos Estados Unidos sobre a economia internacional tem levado a um movimento contraditório de quebra de regras criadas pelo próprio país hegemônico. Daí a globalização criada pelos Estados Unidos entrar em decadência como causa e consequência do protecionismo, a utilização do dólar em arma de destruição em massa e a quebra generalizada das cadeias globais de valor agravada pela pandemia do COVID-19. O impasse que assistimos no mundo de hoje se espelham em instituições de governança global, como a ONU, cada vez mais impotente diante dos fatos e a emergência de novos atores de peso na economia global tornar as instituições formadas no âmbito de Bretton-Woods obsoletas e incapazes de atender as novas demandas de uma ordem global que nasce em meio ao velho.
Daí surge um chamado “Sul Global” que pode se tornar um grande mercado internacional capaz de operar, a começar pelos mercados de energia, com moedas locais. Espalham-se, por exemplo, acordos de Swap cambial entre a China e outras economias da Ásia configurou um grande sistema local de pagamentos que já dispensa o uso do dólar. Rivais históricos como a República islâmica do Irã e o Reino da Arábia Saudita não somente retomam relações diplomáticas, mas passam a compor o BRICS em sua nova composição consolidada na última cúpula deste grupo de países ocorrida na África do Sul. Acredito que os contornos do que se convencinou chamar de “Sul Global”: um conjunto heterôgeneo de países, com níveis diferenciados de desenvolvimento, situados fora do eixo atlantista, mas cuja capacidade de convergência em algumas questões fundamenatais ao futuro de si mesmos e da própria humanidade tem se mostrado notável. A meu ver, o futuro político dos BRICS+ está cada vez mais relacionado com a busca insistente na convergência deste grupo de países e ao “Sul Global” como um todo.
O interessante notar é que após a crise financeira internacional e a exposição da hipocrosia ocidental em todos a linha, voltou à tona a centralidade da luta pelo direito ao desenvolvimento tão presente nas lutas anticoloniais e que encontraram na União Soviética e na China seus mais brilhantes representantes. O “Sul Global”e a África em particular ive uma nova onda de luta pela independência e contra o neocolonialismo. Isso significa que o futuro político do BRICS+ também está relacionado com a forma que este tipo de luta global contra a miséria e o subdesenvolvimento irá ocorrer. Aqui entra um outro elemento fundamental para entender o nosso futuro comum: o surfimento de uma outra globalização.
Outra espécie de globalização?
Segundo Wang Yi (Chanceler da República Popular da China), “Nosso círculo de amigos estará sempre no Terceiro mundo. Lembre-se: os países desenvolvidos do Ocidente não nos chamarão para jogar e, aos olhos deles, sempre terão um ‘complexo de superioridade’. O Ocidente sempre desprezará nossos valores e considerará a China como ‘atrasada’. Aos olhos dos ocidentais, sempre haverá ‘diferenças entre o Oriente e o Ocidente’. Não pense que você pode se integrar ao mundo ocidental, nem pense ingenuamente que pode.
No dia 18 de outubro último foi iniciado um grande encontro cujo pano de fundo fora a comemoração dos dez anos da Iniciativa Cinturão e Rota. A grande maioria dos chefes de Estado e governo do Sul Global esteve presentes no evento, com destaque à presença permanente de Vladimir Putin ao lado de Xi Jinping nos mais variados momentos do encontro. Existe uma série de questões que os intelectuais interessados na mudança de dinâmica que marca o nosso momento histórico devem responder. Uma delas envolve a chamada “globalização”, o seu ocaso ou o surgimento de outra espécie de globalização, esta já sob os auspícios da Eurásia e da China, em particular.
Em setembro de 2013 o presidente chinês Xi Jinping lançou as linhas gerais do que fora chamado à época de “Cinturão Econômico da Rota da Seda”, atualmente “Iniciativa Cinturão e Rota” (BRI). Desde então, 154 países aderiram formalmente ao projeto com cerca de US$ 1 trilhão já foram investidos em quase todos os continentes do mundo. Dez anos após o lançamento da Iniciativa Cinturão e Rota, o mundo encontra-se diante de uma série de discussões, dentre elas a de uma chamada “desglobalização” – acelerada pelo escancaramento do histórico protecionismo estadunidense e de uma tentativa de cancelamento da China do mercado global de suprimentos para as infraestruturas de semicondutores. Esse processo trouxe, realmente, fissuras ao padrão de globalização preexistente, mas será que significa o início de uma “desglobalização”?
O padrão de globalização inaugurado pelos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial e que ganha outros contornos, chamados “financeirizados”, desde o final da década de 1970, arrastando o mundo – e a China em particular – para novos marcos institucionais de todo tipo e por novos arranjos territoriais baseados tanto na velocidade com que os capitais saem e entram nos países quanto na reorganização da geografia industrial mundial. Inflação baixa nos EUA passou a ser sinônimo de Made in China. O que os policymakers estadunidenses nunca imaginaram é que o homem que incluiu a China na economia capitalista mundial antes fora um herói da Longa Marcha (1934-1935) e não um indicado seu na Coreia do Sul ou no Japão. Referimo-nos a Deng Xiaoping.
Em cerca de 40 anos a financeirização foi erodindo a capacidade dos EUA de se reinventarem periodicamente. Sua quase imbatível máquina militar sendo testada mais vezes em uma década do que em toda Guerra Fria contrastava com uma sociedade cada vez mais fraturada pela desigualdade social. Por outro lado, a cada nova crise financeira, menor a distância entre a China e os Estados Unidos. Nas últimas quatro décadas o país construiu “três imensas máquinas”: a máquina de construção de valores de troca (a transformando em máquina do mundo), uma máquina financeira (a transformando no maior credor líquido do mundo) e em máquina de construção de valores de uso (em 20 anos o país construiu 42 mil km de trens de alta velocidade e se constituindo no maior exportador de bens públicos em infraestruturas da história humana).
É nesse ponto que devemos questionar a chamada “desglobalização”. Não estaria ocorrendo uma globalização tendo a China como promotora baseada tanto no movimento de incorporação da Rússia como parte soberana de seu território econômico quanto na integração física do mundo com infraestruturas baseadas em grande capacidade produtiva e estatal instalada e em bancos públicos (criadoras de moeda fiduciária), colocando em terceiro e quarto planos o endividamento dos receptores desses investimentos em detrimento de maior protagonismo chinês e mesmo de potências regionais como a África do Sul, o Egito, a Etiópia e quem sabe o Brasil?
Por outro lado, se existe uma globalização com características chinesas e se qualquer processo de globalização pode ser definido, também, pelos valores compartilhados pelo polo gravitacional, o que podemos esperar de uma globalização à chinesa? As ciências sociais e humanas não contam com laboratórios de teste como as hard sciences. Portanto, muitas respostas estão colocadas no campo da história. Nesse sentido, dado o peso exercido pela economia produtiva (não financeirizada) chinesa no mundo, que essa “globalização” venha a redesenhar uma nova divisão internacional do trabalho, na medida em que a China comece a exportar sua prosperidade. Essa exportação já ocorre em certa medida na mesma proporção em que determinado país consiga planejar sua economia partindo das tendências criadas pela China. Esse é um ponto.
Outro ponto é a multipolaridade. Aos chineses não interessa o ônus de ser um hegemon. Mas interessa polarizar o debate sobre a governança global. Por exemplo, para a China a tendência da unipolaridade viria a substituir à relacionada aos vários polos de poder. Os valores deste processo estão em disputa. Os EUA falam em “nova ordem mundial” (sic). A China lança três grandes “Iniciativas Globais”, sendo elas: (i) desenvolvimento global; (ii) segurança global; e (iii) civilização global. Podemos afirmar que a governança chinesa repagina os princípios da famosa Conferência de Bandung (1955), com o acréscimo da “internacionalização de fatores” ao colocar no campo do Sul Global quase que a responsabilidade pela salvaguarda de um mundo marcado por tensões de múltiplas ordens. É uma relação dialética entre futuro, BRICS+ e o Sul Global
A centralidade da China
O final da União Soviética trouxe consequências negativas ao mundo sentidas até hoje: 1) a transformação do neoliberalismo em “única saída possível”; 2) a regressão nos direitos sociais e trabalhistas pelo mundo 3) a multiplicação de intervenções militares por parte dos Estados Unidos, e seu keynesianismo militarizado, em escala jamais vista mesmo durante a Guerra Fria e 4) o ressurgimento com força do fascismo e do nazismo no horizonte político internacional. Por outro lado a erosão da capacidade de reinvenção do capitalismo em virtude da financeirização e a emergência de um país socialista (China) como potência econômica cujo caminho nada reflete as receitas neoliberais vendidas pelo FMI e o Banco Mundial contribuem para a aceleração da transição sistêmica da qual uma globalização centrada na China é apenas sua maior expressão.
Não vou aqui trazer números já conhecidos sobre a trajetória chinesa, mas é bom lembrar – por exemplo – que uma das consequências do conflito na Ucrânia não foi somente uma maior contestação à ordem baseada no dólar como moeda de referência para orperações financeiras diversas. Percebo uma integração, por exemplo, pela entre os territórios econômicos chinês e russo; uma clara concretização de um projeto Eurasiano baseado em trocas em todos os níveis, desde energia até alta tecnologia, e mediado por centenas de projetos conjuntos envolvendo o investimento de centenas de bilhões de dólares. Isso é possibilitado pela posição central que a China ocupa no mercado de crédito internacional, o papel de sua demanda doméstica e nos imensos potenciais guardados pela Federação Russa e que vão muito além de suas reservas naturais. A exportação de sua prosperidade ocorre também com a possibilidade aberta pela China à industrailização e reindustrialização de diversos países. São sugestivos os casos da Argentina, Bolívia, Zimbabue, Indonésia e outros onde o valor de produtos primários é agregado por empresas chinesas nos países de origem.
Neste aspecto, termino aqui de forma muito objetiva, o futuro político dos BRCS+ e do Sul Global depende sobremaneira do futuro da China e de como seus desafios domésticos estão a ser enfrentados.