Esta semana, completaram-se 57 anos do golpe civil-militar que instaurou uma ditadura no Brasil, que perdurou por longas e intermináveis duas décadas.
O clima de horror não foi suficiente para calar a voz de artistas indignados e comprometidos, que buscaram formas de resistência por meio da arte. O melhor da arte produzida no país, entre as décadas de 60 e 80, tem inspiração nas lutas por liberdade e por democracia.
Em 2021, muitos continuam respeitados e elogiados pelo público justamente por manterem a qualidade artística na mesma intensidade do engajamento político.
Se em momentos tão difíceis fez-se arte com posicionamento, o que justifica que hoje um artista brasileiro escolha se calar diante da tragédia social e política que se abate no país?
“Não gosto de politicagem. Isso já está claro para todos que me acompanham. Cada um deve saber das suas responsabilidades.”
Essa foi a resposta dada pela cantora Ivete Sangalo à cobrança por maior engajamento em “questões sociais” feita pelo secretário de Saúde da Bahia, Fabio Vilas-Boas.
O gestor utilizou as redes sociais para marcar artistas e famosos brasileiros, como Ivete, Daniela Mercury, Cláudia Leitte, o jogador Neymar e os e os humoristas Whindersson Nunes e Danilo Gentili, chamando atenção para o fato de o país estar caminhando para o colapso no sistema de saúde. “O que você fez para ajudar a evitar?”, questionou Vilas-Boas.
Ivete não gostou da cobrança pública e respondeu com indignação.
Artistas do Axé Music entendem bem de politicagem
Não se sabe, ao certo, o que significa politicagem no dicionário de Ivete. A palavra pode servir para definir bem o que acontece no Carnaval de Salvador quando os artistas, de cima do trio elétrico, rendem animadas homenagens ao prefeito e ao governador, responsáveis por bancarem a festa mais lucrativa para as estrelas do axé music.
Politicagem também poderia ser aceitar participar da despedida do ex-prefeito de Salvador ACM Neto (DEM), que pretendeu realizar uma megafesta de Réveillon na cidade, em 31 de dezembro de 2020, em pleno surto de covid-19. Projeto apenas desestimulado pela desistência de emissoras de televisão em transmitir a festa por não verem motivos de comemoração no país.
Os fãs da cantora correram para listar seus feitos sociais, como doações de cestas básicas e macas. Muito digno. Mas o que o gestor estava convocando era para o uso da sua visibilidade e influência para conscientizar para o grave momento que estamos vivendo. Especialmente entre os mais jovens, grupo em que a contaminação aumenta e as novas variantes do vírus têm sido mais violentas.
Com mais consciência —inclusive política— precisaríamos de menos macas e menos caridade. Responsabilidade, é claro, que não é apenas de Ivete, é de todo cidadão brasileiro, que enxerga a dimensão da crise. Em especial, políticos e gestores, como Vilas-Boas, que tomam decisões sobre investimentos e políticas públicas.
A mesma cobrança por posicionamento da cantora foi feita durante as eleições de 2018, quando todos os indícios dessa tragédia que é o governo Bolsonaro já haviam sido anunciados e o grito de “Ele Não” ecoou pelas ruas, shows e redes sociais Brasil afora, mobilizando engajamento de muitos artistas.
Na oportunidade, Ivete escolheu também ficar de fora. Mesmo com os movimentos passando, literalmente, em frente à sua janela, no Largo do Campo Grande, em Salvador, com cartazes e gritos que já denunciavam as violações de direitos e as ameaças à democracia e à liberdade que agora se concretizam.
“Há momentos em que ficar em silêncio é mentir. Pois o silêncio pode ser interpretado como aquiescência.” Escreveu em sua rede social a cantora Daniela Mercury, citando um trecho de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, Espanha, que se opôs ao regime do ditador Francisco Franco ente 1939 e 1975.
Daniela, que se mobilizou contra a eleição de Bolsonaro e, inclusive, se ofereceu para explicar o mecanismo da Lei Rouanet para o presidente já eleito, que mesmo sem compreender criticava o dispositivo de renúncia fiscal, entrou no embate entre a colega e o gestor baiano, com uma conclamação:
“Todos os artistas e a sociedade devem agir juntos apoiando as secretarias de Saúde e cobrando do governo federal vacina para todos. Temos um grupo que já apoia, mas precisamos de 100% de adesão! VOCÊ precisa colar na gente!”, convocou Daniela, que é embaixadora do Unicef (ONU) no Brasil desde 1995.
Omissão é sim posição política
Ninguém é obrigado a nada, como defende a geração do engajamento virtual. Essa mesma turma sabe bem que se omitir é tomar posição.
Uma pena Ivete não querer se juntar ao time de artistas que nunca tiveram receio de envolverem seu talento a favor de causas sociais e políticas. Da Bahia, referências não faltam.
É o caso da cantora Maria Bethânia, 74, que iniciou a carreira artística em 1965, com um show de sugestivo nome, Opinião, tendo como maior sucesso a canção Carcará, de João do Vale, quando denunciava o êxodo de nordestinos afligidos pela seca.
No dia 13 de fevereiro de 2021, exatamente 56 anos após a estreia no show Opinião, Bethânia realizou uma live em que, mais uma vez, seu exuberante talento de intérprete serviu para aprofundar temas tão caros ao país. Em performance impecável e responsabilidade com o seu ofício, ela cantou sobre o racismo, na canção 02 de junho, de Adriana Calcanhoto, e sobre as liberdades democráticas, na emblemática Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, e pediu: “Vacina, Respeito, Verdade e Misericórdia”.
Nem censura política, nem interesses econômicos, nem cômodas posições isentas, nada pode diminuir a relevância de uma arte com propósitos e atenta às questões urgentes do seu tempo.