Soft power do BRICS modifica ordem cultural do mundo, dizem especialistas

Em um mundo cada vez mais conectado, o poder cultural é crucial na geopolítica global. O soft power do BRICS (composto por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e outros países cuja adesão foi formalizada neste ano) tem sido um dos diferentes aspectos que influenciam na percepção internacional sobre tais nações.

© Sputnik / Natalia Seliverstova

Especialistas entrevistados pelos jornalistas Melina Saad Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, abordam as formas pelas quais os países do BRICS utilizam suas culturas para promover suas identidades nacionais e interferirem no jogo político em nível mundial.

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e doutor em letras pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University, ressalta a contribuição da literatura russa clássica para a formação da identidade cultural russa no cenário internacional.

Ele cita o filme “O Senhor das Armas”, em que Nicolas Cage menciona a Rússia como exportadora de novelistas. Segundo Vassoler, a literatura russa é uma das grandes vertentes culturais do país, comparável ao desenvolvimento científico, aeroespacial e musical.

Vassoler lembra a cerimônia de abertura dos Jogos de Inverno de Sochi, em 2014, onde grandes escritores russos como Fiódor Dostoiévski, Ivan Turguêniev, Anton Pavlovitch Tchekhov, Vladimir Maiakóvski e Aleksandr Soljenítsin foram homenageados.

“Ao centro do campo, lá do Estádio Olímpico, havia dois grandes cartazes. Um para o Dostoiévski e outro para o Kalashnikov [criador do fuzil AK-47].”

Nos dias atuais, a relevância de eventos ocorridos em território russo ou a partir de iniciativa do país, como o Festival Mundial da Juventude ou as Temporadas Russas, são algumas das diferentes atuações.

Quem criou o conceito de soft power?

Pedro Martins, mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e bacharel em relações internacionais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), define o conceito do soft power como a “capacidade de moldar as preferências dos outros países”.

Sobre o Brasil, Martins destacou que o país usa “muito o futebol como soft power”, uma construção que se estende “ao longo de décadas” através de eventos esportivos.

Ícones do esporte como Ayrton Senna Pelé, segundo ele, fizeram que o país tivesse uma imagem de “um país cordial, amigável, que recebe bem as pessoas”.

Sobre a Índia, Martins comentou que o país enfrenta o desafio de evitar caricaturas ao promover seu soft power.

Segundo ele, o atual primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, acabava estipulando muito a questão do yoga como elemento de difusão da cultura indiana. Além disso, ele destaca a influência da diáspora indiana nos Estados Unidos, com uma grande comunidade indiana.

No caso da China, Martins entende que o país apela para seu passado histórico e cultural, com diferentes filmes de diversas projeções usando o kung fu.

Em relação a países recém integrados ao bloco, como o Irã, Martins comentou sobre os desafios que o país persa enfrenta devido à cobertura negativa da mídia ocidental. Ele destacou que o país tenta explorar seu rico passado histórico como uma civilização avançada.

Ele também cita produtos culturais e agrícolas importantes iranianos, como o açafrão e os tapetes persas.

“Essa visão ocidentalizada muito negativa é muito mais negativa para alguns países”, afirma, diferenciando a percepção ocidental sobre as diferentes nações.

Qual a diferença de hard power e soft power?

Segundo ele, o soft power é “uma forma mais sutil” de influência em comparação ao hard power, que envolve o exercício do poder “no sentido clássico”, militar ou economicamente, e que ainda possui eficácia a médio e longo prazo.

Perguntado sobre o Banco do BRICS e seu papel no financiamento de projetos desta natureza, Martins entende que “ele acaba servindo mais como um soft power do BRICS, enquanto grupo”, focando principalmente em projetos de infraestrutura.

Martins observa que cada um dos países tem suas particularidades. “No caso da Rússia, ela herda muito a questão do soft power da época da Guerra Fria, da antiga União Soviética”, o que inclui cooperação com países africanos, por exemplo, algo semelhante com a influência chinesa no continente.

“A literatura russa tem vários poetas, uma profusão de escritores,” diz, mencionando nomes como PushkinDostoiévski Tolstói. Segundo ele, a literatura ajuda a entender a mentalidade e a cultura russas, moldando as preferências e percepções de outras nações.

Vassoler ressalta que a literatura russa do século XIX funcionava como uma espécie de Parlamento, debatendo questões sociais, políticas e filosóficas em um país onde as manifestações eram reprimidas.

Ele traça um paralelo com a primeira metade do século XX na França, onde escritores eram ideólogos e representantes das populações.

Ele destacou que “a grande literatura russa congregou essas questões” e mencionou que, em seus cursos sobre Dostoiévski na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pessoas de diversas áreas de conhecimento se interessavam pela literatura russa devido às discussões sobre existência, socialismo e materialismo.

Vassoler fez comparação com a literatura russa e a brasileira, afirmando que autores como Machado de Assis e Guimarães Rosa teriam alcançado maior reconhecimento internacional se fossem russos, devido ao apoio estatal à cultura na Rússia. Ele criticou a elite brasileira, que ele considera “entreguista” e pouco interessada em promover a cultura nacional.

Sobre a ocidentalização, Vassoler observa que os jovens russos estavam lendo menos em 2018 comparado a 2008, devido à influência americana. No entanto, ele destacou que a literatura ainda é parte integrante do imaginário russo, mencionando como, durante a Segunda Guerra Mundial, soldados do Exército Vermelho liam obras de autores como Vasily Grossman.

A Rússia, um país eurasiático cuja igreja Ortodoxa possui forte presença na identidade cultural russa, possui vários exemplos de como a religiosidade está imbuída nacionalmente, como a unificação dos czares e a canonização dos membros da família Romanov, assassinados durante a Revolução Russa de 1917.

“Tolstoi é messiânico, Dostoiévski é messiânico, ambos pensaram sobre qual o papel a Rússia teria no consenso das nações”, explica.

Vassoler também menciona a importância do Aleksandr Pushkin na formação da língua e identidade russa, com a aplicação de suas obras desde o ensino infantil.

Segundo ele, mesmo com ocidentalização, a literatura russa mantém papel essencial na cultura nacional.

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