‘Pax sinica’: um olhar sobre propostas da China para a solução do conflito na Ucrânia

Nos últimos tempos a China tem aspirado a um papel de liderança global, sobretudo no âmbito da política. Não por acaso, o país surpreendeu o mundo recentemente ao ter atuado como principal intermediário na regularização dos contatos diplomáticos entre Irã e Arábia Saudita.

Para além do Oriente Médio, no entanto, o governo chinês também tem se esforçado para propor soluções para o conflito na Ucrânia.

Em fevereiro desse ano, por exemplo, o Ministério das Relações Exteriores da China emitiu um plano com 12 pontos que considera importantes para o fim das hostilidades. Em março, Xi Jinping realizou uma importante visita de Estado à Rússia, simbolizando mais uma vez que, independentemente das tentativas ocidentais de isolamento do presidente Vladimir Putin, sua solidariedade para com o líder russo continua intacta.

Já na semana passada, o mandatário chinês conversou por telefone com Vladimir Zelensky, em sua primeira conversa oficial com o líder ucraniano desde o início do conflito. Dada essa proatividade chinesa, é possível afirmar que Pequim tem intensificado seus esforços no sentido de se posicionar como um potencial intermediário para uma solução de paz entre Rússia e Ucrânia.

Mas enfim, existem chances de as proposições da China serem consideradas para efeito de um acordo negociado entre russos e ucranianos? Existem, mas ainda assim a sua operacionalização será uma tarefa nada simples. Começando pelo primeiro ponto do plano, os chineses fazem menção à importância do respeito à soberania e à integridade territorial dos Estados, com base no entendimento universal do direito internacional.

De início, este será um dos temas mais contenciosos numa eventual conversação de paz. Com efeito, a julgar pelo fato de a China (até o presente momento) não ter reconhecido a Crimeia como parte da Rússia, é possível especular que Pequim imagine como uma das condições necessárias para uma solução da crise a reversão ao status territorial pré-2014 entre Rússia e Ucrânia.

Se este for o caso, também as regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhie, que passaram por referendo no ano passado para sua inclusão à Rússia, acabariam sofrendo uma reversão à Ucrânia, o que parece ser inadmissível para a Rússia. Muito embora não esteja 100% claro qual seja a posição chinesa frente a essa questão, é certo dizer que o aspecto envolvendo o redesenho territorial do Leste Europeu será um dos tópicos mais espinhosos dentro das tratativas políticas entre Rússia e Ucrânia.

Outra das questões levantadas pela China envolve o abandono – pelos atores conflitantes – de uma mentalidade típica da Guerra Fria. Com efeito, muito embora a Guerra Fria tenha terminado no começo dos anos 1990, o Ocidente continuou ampliando e fortalecendo o seu bloco militar representado pela OTAN no continente europeu, deixando claro que a Rússia voltava a ser seu principal adversário (geo)político.

A Rússia, por outro lado, em vista exatamente destes movimentos, também começou a enxergar no Ocidente uma ameaça à sua segurança e integridade territorial, culminando num clima de desconfiança mútua entre os dois lados.

Fato é que, desde os anos 1990, tanto russos quanto chineses já manifestavam sua preocupação e insatisfação com o desejo do Ocidente (liderado pelos Estados Unidos) de ampliar o quadro de membros da OTAN, ameaçando cercar militarmente ambos os países.

Cabe lembrar ainda que: de acordo com uma emenda aprovada em 2019 pelo parlamento ucraniano, Kiev reforçava sua intenção de aderir à OTAN. Essa, por sua vez, era justamente uma das razões apontadas pela Rússia como sendo uma ameaça direta à sua segurança nacional.

Diante desse contexto, a neutralidade ucraniana frente à Aliança Atlântica deverá ser uma das principais demandas russas – contando com o apoio da China – numa futura conversação de paz.

A propósito, a retomada dessas conversações trata-se de elemento fundamental segundo os chineses para se chegar a uma solução da crise. Vale lembrar que durante as primeiras semanas do conflito Zelensky demonstrou-se propenso a iniciar tratativas com Vladimir Putin, de modo a encontrar caminhos para um cessar-fogo.

Contudo, conforme a participação — direta e indireta — do Ocidente foi aumentando ao longo do tempo, a disposição de Zelensky em negociar foi sendo paulatinamente minada, culminando no enfraquecimento dos mecanismos de diálogo entre russos e ucranianos.

Por certo, a China, assim como o próprio Brasil, demonstra claramente seu interesse pelo fim das hostilidades, agindo na contramão dos países ocidentais, cujo apoio financeiro e militar a Kiev exerceu papel não negligenciável no prolongamento do confronto militar.

Outra questão importante defendida pela China trata-se da suspenção imediata do uso de sanções econômicas unilaterais e não autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU. A respeito das sanções, o ano de 2022 provou que os efeitos negativos causados pela sua utilização atingiram com especial impacto os países em desenvolvimento, mas também os próprios países que as aplicaram.

Como efeito, testemunhou-se altos índices inflacionários nas economias europeias e até mesmo nos Estados Unidos, como resultado do aumento no preço dos combustíveis e alimentos. O problema principal residiu na percepção das lideranças ocidentais de que o uso de coerção econômica faria com que a Rússia mudasse o curso de sua política externa, o que se provou um erro tanto em 2014 quanto agora.

Para além de todos os pontos já comentados, a China também chama a atenção para a resolução da crise humanitária, para a proteção de civis e prisioneiros de guerra, para a inadmissibilidade do uso de armas nucleares, para a necessidade de se facilitar as exportações de grãos e para a promoção de esforços de reconstrução nas zonas afetadas pelos combates.

Seja como for, as negociações entre Rússia e Ucrânia (que deverão contar também com representantes da União Europeia e dos Estados Unidos, ativamente envolvidos no conflito), quando ocorrerem, deverão envolver uma complexa articulação política e concessões recíprocas por parte de cada um dos lados.

Sem sombra de dúvidas, podemos ter a certeza de que a dificuldade para se chegar a um denominador mínimo comum será muito alta. De todo modo, é positivo notar que a China tem desempenhado um papel proativo no sentido de se tornar um possível intermediário nesse processo.

Se o resultado desse futuro acordo levará em conta todos os pontos levantados pela China somente o tempo dirá. O que é inegável, no entanto, é a importância da iniciativa de Pequim na promoção de relações harmoniosas entre os Estados, apesar de suas diferenças políticas e de visões de mundo. Podemos estar diante, portanto, do nascimento de um novo paradigma internacional para o século XXI, a saber, o modelo de uma “pax sinica“.