Política aberta dos EUA quer fragmentar territorialmente a China, diz historiadora

Isis Paris Maia fala das sanções para travar o país de Xi Jinping e do uso pelos chineses das tecnologias digitais

A pesquisadora comenta que "a China segue a universalização do bem estar, enquanto nos países capitalistas aumenta a polarização social sob o neoliberalismo" (Foto: Arquivo pessoal)

Depois de estudar a ascensão social vertiginosa dos chineses nas últimas décadas – mais de 800 milhões de pessoas galgaram novo status na sociedade – a historiadora Isis Paris Maia pesquisa a governança digital na China. Ela acabou de retornar de uma viagem de estudos ao país de Xi Jinping, onde participou do Seminário de Ciência e Tecnologia para os Países Latino-Americanos e colheu novos subsídios para sua tese de doutorado na Ufrgs.

Apesar de ser, disparado, o principal parceiro comercial do Brasil, a China e seus avanços são silenciados aqui e no restante do Ocidente, obra do poder e da influência dos Estados Unidos no âmbito da comunicação. O que acontece apesar dos números altissonantes do desenvolvimento chinês: 99,3% da população com acesso à eletricidade, 99,6% das estradas pavimentadas, conectividade de internet e fibra ótica abrangendo 98% de um território maior do que o nosso.

Neste diálogo com Brasil de Fato RS, Isis conta um pouco do que viu e do uso inovador das tecnologias digitais na gestão governamental. Descreve também como Washington e seus aliados, com sanções e campanhas midiáticas, tentam travar o progresso chinês.

Brasil de Fato RS – Você retornou faz pouco de uma viagem à China. Foi a convite do governo chinês, de uma instituição ou por iniciativa própria para saber mais sobre o país que você estuda?

Isis Paris Maia – Essa viagem ocorreu em função de um convite da Escola de Negócios de Xangai para participar do Seminário de Ciência e Tecnologia para os Países Latino-Americanos. Durou 21 dias com aulas, debates e visitas técnicas. As cidades visitadas foram Xangai, Shenzhen e Guangzhou.

A maior parte do evento ocorreu em Xangai, local da instituição promotora do seminário. Mas nas três cidades tivemos oportunidade de realizar visitas técnicas a empresas, pólos tecnológicos, incubadoras, museu de inovação e demais entidades ligadas ao desenvolvimento tecnológico do país.

Você havia estado na China antes ou esta foi sua primeira visita?

Essa foi minha primeira visita e veio coroar esse período de estudos e pesquisas dedicados à China. Meu foco tem sido a dimensão institucional e principalmente a questão das políticas públicas, cujo desconhecimento é maior do que sobre temas relacionados ao desenvolvimento e à geopolítica da China. Nesse sentido, a oportunidade de estudar as políticas in loco inegavelmente traz subsídios empíricos.

Você já estudou, para sua dissertação de mestrado, a erradicação da pobreza extrema na China para sua dissertação de mestrado. Sobre este tema, o que chamou sua atenção na visita?

Na minha dissertação de mestrado, explorei o tema da erradicação da pobreza com foco específico nas políticas públicas direcionadas. Uma dimensão crucial nesse processo foi a utilização do Big Data como ferramenta de planejamento, especialmente no mapeamento das regiões mais pobres. Durante as visitas, conhecemos o centro de supercomputação de Shenzhen onde grande volume de dados são coletados (Big Data) e são utilizados na governança.

“No Ocidente ainda predominam visões estereotipadas e simplistas sobre a China”

Aliás, a China tem se destacado pelo uso inovador destas tecnologias digitais em seu planejamento e gestão governamental, um aspecto que me levou a buscar o aprofundamento nesse tópico ao ingressar no doutorado no início deste ano. Foi justamente o contato com o uso dessas tecnologias para a erradicação da pobreza que me suscitou, com o ingresso no doutorado, pesquisar a governança digital na China. Ficou claro que esse campo é uma fronteira fundamental, na qual a China tem trilhado um caminho inovador, embora ainda predominem, no Ocidente, visões estereotipadas e simplistas sobre as instituições e a política na China.

Quais são os próximos passos da China no sentido da ascensão dos mais pobres? Em outros termos: hoje, percentualmente, quem tem acesso a luz elétrica, estradas, ferrovias, saneamento, internet?

Além da meta de eliminação da pobreza extrema, alcançada em 2020, a China experimenta uma mobilidade social abrangente e multifacetada. Ou seja, há uma melhora dos padrões de consumo de bens e serviços públicos, ao passo que a infraestrutura progride aceleradamente.

Esse é um desafio especialmente complexo para um país com uma população sete vezes maior que a do Brasil e um território com 1 milhão de km² superior ao nosso. Ademais, é um país com condições geográficas, climáticas e ambientais bastante complicadas. Um aspecto notável nesse contexto é a abordagem chinesa na expansão e aprimoramento de diversos tipos de infraestrutura. Por exemplo, a China possui uma extensa rede de trens de alta velocidade, com cerca de 42 mil km de extensão, ultrapassando a soma de todos os outros países.


“A China trilha segue a universalização do bem estar, enquanto nos países capitalistas aumenta a polarização social sob o neoliberalismo”

Outros dados dão conta do progresso das últimas décadas: estradas pavimentadas compreendem 99,6%, acesso à eletricidade atinge 99,3%, cobertura de sinal de comunicação abrange 99,9%, enquanto que a conectividade de internet e fibra óptica, assim como a disponibilidade de 4G, abrangem 98% do território. Esse progresso abrangente, colocado pelo governo como a meta de construção de uma “sociedade harmoniosa”, visa a expansão do bem-estar e, consequentemente, é uma das prioridades fundamentais do país na atualidade.

Este assunto se relaciona com um tema que venho pesquisando relacionado à construção de um Estado de bem-estar social na China de orientação socialista. Enquanto a China trilha esse caminho de universalização do bem estar, cabe lembrar que nos países do núcleo do sistema capitalistas assistimos a um aumento da polarização social sob a agenda neoliberal.

“Três milhões de quadros partidários e funcionários foram mobilizados para executar essas políticas em regiões muito difíceis”

Os chineses promoveram aquela que é, talvez, a maior ascensão social da história humana ao retirarem algo como 800 milhões de pessoas da miséria. O que pode contar a respeito?

A eliminação da pobreza é de fato a maior mobilidade social da história. Trata-se de um feito tão extraordinário quanto silenciado. A cobertura inadequada com sua relevância decorre do fato de ter acontecido na China, não somente um país governado por um Partido Comunista como principal desafiante à hegemonia estadunidense.

O que impressiona não são apenas os números, mas também a complexidade das ações empreendidas. Sob a liderança de Xi Jinping, as políticas públicas direcionadas foram executadas para lidar com os últimos 43 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Essas ações ocorreram em circunstâncias extremamente adversas, em regiões geograficamente difíceis e com desafios singulares. Em um país tão vasto e complexo etnicamente, e onde muitas áreas careciam de infraestrutura adequada. Dessa forma, isso demandou um conjunto específico de políticas destinadas a atender as necessidades particulares dessas comunidades.

A elaboração, execução e avaliação dessas políticas públicas seguiram um processo meticuloso, desde o mapeamento das áreas, seguido pela implementação e pela avaliação dessas políticas. Foi notável também a quantidade de recursos humanos: cerca de três milhões de quadros partidários e funcionários que a China mobilizou para executar essas políticas em regiões muito difíceis. Isso é revelador da capacidade política e organizacional do PCCh.

Que tipo de contato você teve com o povo chinês e com as instituições do país?

É comum o predomínio de visões bastante simplificadas da realidade política chinesa. Imaginar que, por se tratar de um país governado hegemonicamente por um partido comunista, se trata de um país com um sistema monolítico e centralizado, é um gigantesco equívoco.

Na verdade, e isso está muito claro na dissertação de mestrado, primeiro, o sistema político chinês é extremamente descentralizado e permite um grau muito alto de autonomia para as províncias e para as municipalidades. Segundo, e é outro tema que estou me dedicando, o sistema político chinês possui diversificados e multidimensionais mecanismos de consulta e deliberação. Aliás, muito dessa dimensão consultiva das instituições chinesas incluem as novas ferramentas digitais. E, ao circular bastante nesses dias e conversar com pessoas de diversos segmentos sociais, o nível de credibilidade do governo e das instituições é notável.

O que vemos são pessoas circulando com segurança e tranquilidade pelas ruas, um acesso crescente ao consumo e, sobretudo, uma país em franca transformação.

“O 14º Plano Quinquenal definiu o conceito de China Digital como vetor do desenvolvimento nacional, incluindo 5G, Big Data, IA etc.”

O governo chinês desenvolve um projeto para construir um sistema nacional de big data até 2025. O que pretende a China no campo da digitalização onde há uma disputa tão intensa com o Ocidente, sobretudo os EUA?

A questão vai bem além do Big Data. Na verdade, o 14º Plano Quinquenal definiu o conceito de China Digital como vetor do desenvolvimento nacional, incluindo 5G, Big Data, Inteligência Artificial, blockchain, computação quântica, armazenamento de dados em nuvens e um conjunto de inovações no campo digital. Não por acaso, é essa fronteira da inovação da atualidade que tem recrudescido a competição com os EUA, principalmente no caso dos semicondutores.

A política dos EUA, diante do irrefreável crescimento chinês, é tentar interditar o desenvolvimento deste segmento no qual o Ocidente ainda preserva a liderança. E, como ficou explícito no seminário, o governo da China está determinado, e mobilizando todos os meios, para lograr autossuficiência também na produção de chips.

“Além de trocar boa parte de sua frota por carros elétricos, a China deflagrou uma gigantesca política de arborização nas grandes cidades”

No passado, na discussão sobre o aquecimento global, a China foi vista como vilã pelo uso intensivo do carvão na produção de energia. Como está esta situação agora?

Entre as muitas visões simplificadoras sobre a China, uma delas é sobre a questão da matriz energética. De fato, a China há algumas décadas tinha quase 70% da sua matriz dependente de carvão e isso, combinado há uma arrancada industrial das mais aceleradas que o mundo já viu e em condições populacionais já destacadas, fez com que o país tivesse algumas das cidades com a pior qualidade do ar. Embora um crescimento acelerado nesta escala tenha tido custos ambientais, pouco se sabe sobre o giro que a China tem dado em seu modelo de desenvolvimento nas últimas décadas.

A China hoje já é fronteira também na inovação em setores de tecnologias e soluções ambientais. Por exemplo, o caso da qualidade do ar nas cidades é emblemática, pois o país, além de fechar fábricas ultrapassadas, tem mudado rapidamente sua frota de automóveis para veículos elétricos e híbridos, além de ter realizado uma gigantesca política de arborização das grandes cidades.

As três cidades que visitamos tiveram árvores adultas plantadas ao longo de todas as ruas. Sobre o caso da matriz energética, a China também é o país que mais investe em energia eólica e solar, tendo inclusive reduzido o uso da energia do carvão para quase 50% da matriz energética – o que é surpreendente para um país com tal ritmo de crescimento.

“Os EUA buscam criar um cerco à China mobilizando seus aliados e impondo sanções – bastante em desacordo com o discurso do livre comércio”

Apesar da China ser hoje uma espécie de “fábrica do mundo” e o principal parceiro comercial do Brasil, a maioria dos brasileiros ainda sabe pouco sobre o país de Xi Jinping. O que de mais importante os brasileiros precisam saber sobre a China?

Não só o Brasil, mas o Ocidente de uma maneira geral, sabe muito pouco sobre a China. Além de ter pouca informação, uma parte importante destas são totalmente enviesadas, como reflexo da rivalidade sino-estadunidense e do enorme domínio que os EUA e seus aliados exercem sobre o campo comunicacional através de um punhado de agências de notícias e, com efeito, da produção de notícias sobre temas internacionais.

Mais do que a definição dos temas a serem tratados, são estas agências que definem a abordagem. Vamos a alguns exemplos muito interessantes. A questão dos Uigures (povo que habita o Noroeste chinês, na maioria de fé muçulmana), por exemplo, um tema muito batido durante a pandemia, não passa de um ‘cloroquinismo geopolítico’. Eu já fiz artigo sobre o assunto e capítulos de livro demonstrando que, para além das contradições sócio-étnicas no Xinjiang e do altruísmo ocidental, há uma política aberta de Washington voltada a fragmentar territorialmente a China.

Outro caso emblemático, diz respeito ao assunto dos semicondutores. Os EUA buscam criar um cerco à China mobilizando seus aliados (Holanda, Coreia do Sul, Japão) e impondo toda sorte de sanções – bastante em desacordo com o discurso do livre comércio. Basta, contudo, a China vir a restringir a exportação de gases estratégicos para produção de chips, como o gálio e o germânio, para que o país asiático seja responsabilizado pela grande mídia ocidental pelas hostilidade.