A participação do coach, influenciador digital e empresário milionário Pablo Marçal (PRTB) nos debates mudou o cenário eleitoral em São Paulo.
A violência das suas intervenções, com mentiras, insinuações e ataques, e o aparato nas redes sociais para repercutir seu discurso antipolítica levaram o candidato do partido do famigerado Levy Fidelix do aerotrem ao pelotão de frente nas pesquisas.
O fenômeno Marçal é assustador, mas não surpreende. Figuras do mesmo tipo têm ganhado projeção, disputado eleições e chegado a governos em todo o mundo.
Tão importante quanto analisar a ascensão eleitoral do coach é levantar os antecedentes da emergência da extrema-direita por todo o mundo.
Marçal não é um fenômeno puramente eleitoral. Quatro elementos explicam o sucesso na cena política de fantasmas monstruosos, como Donald Trump (EUA), Viktor Orbán (Hungria), Marine Le Pen (França), Rodrigo Duterte (Filipinas), Javier Milei (Argentina), além de Jair Bolsonaro no Brasil, que estão na raiz da ascensão da extrema-direita:
1 – O neoliberalismo, o modelo dominante do capitalismo a partir dos anos 80, entrou em crise por frustrar a expectativa de resolver os problemas da população. Não se realizaram as promessas de prosperidade e desenvolvimento com a diminuição do tamanho do Estado e a “modernização econômica” da liberalização da circulação do capital financeiro, mundialização das empresas do grande capital, desregulamentação da legislação trabalhista, desmonte dos sistema de Previdência e privatizações das empresas públicas. Diante disso, as forças neoliberais adotaram candidatos com um discurso antipolítica para driblar a rejeição aos partidos neoliberais tradicionais.
2 – As forças do grande capital impuseram a aplicação de medidas macroeconômicas, como o tripé inflação baixa, câmbio flutuante e austeridade fiscal, no processo de consolidação do modelo neoliberal. Assim, enfraqueceram os Estados nacionais, bloqueando a capacidade dos governos eleitos com uma plataforma alternativa ao neoliberalismo implementarem mudanças estruturais na economia.
Os governos de esquerda vencedores das eleições sucumbiram programaticamente, admitiram o papel de gestão da crise ou não tiveram força política e social para fazer as mudanças e construir um novo modelo, ficando dentro das margens do neoliberalismo. Ao abdicar do conflito de classes, a esquerda passou a ser considerada como parte do “sistema” de poder.
3 – A consolidação do neoliberalismo levou a uma aproximação do programa aplicado pela direita e esquerda nos governos, com a manutenção das mesmas bases econômicas e a ausência de mudanças estruturais na sociedade. Foi crescendo a percepção de que esquerda e direita, embora tivessem diferenças de contornos gerenciais, não representavam uma superação dos grandes problemas da sociedade.
Com isso, houve um processo de desmoralização e descrédito das democracias liberais, dos sistemas políticos-institucionais e dos partidos políticos tradicionais. A corrupção política se transformou num grande problema da sociedade. Perdeu-se o entusiasmo de votar e a esperança de mudar o futuro do país. Escolher um candidato nas eleições virou uma obrigação ou uma escolha do menos pior.
4 – A crise da democracia liberal se aprofundou com o esgarçamento social e a confusão ideológica, causados pela desestruturação do mundo do trabalho e a fragmentação da classe trabalhadora; pela reação conservadora às mudanças culturais, com a emergência da luta das mulheres, dos negros, da população LGBTQI+; e pela emergência das novas tecnologias e formas de comunicação digital.
Constitui-se uma nova sociabilidade que contrapõe diferentes visões de mundo e valores sociais, colocando em xeque os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade, que nortearam a sociedade desde o final do século 18. O que vigora atualmente é a insegurança, o medo e a desconfiança, que se expressam na epidemia de casos de depressão e ansiedade. A crença na prosperidade foi substituída pelo pragmatismo, pelo cinismo e pelo egoísmo. A esperança de construir um futuro melhor como sociedade foi suplantada pela proteção da família, da religião e do esforço individual para crescer na vida.
A extrema-direita conseguiu captar a profundidade da crise econômica e política e as mudanças sociais e ideológicas das últimas quatro décadas. Apresenta-se como anti-sistema diante da descrença geral com a crise econômica. Resgata o “fantasma do comunismo” para exaltar a propriedade privada e a liberdade de mercado, radicalizando os valores neoliberais.
Aproveita os processos eleitorais para desqualificar a política e capitalizar com a frustração com a democracia liberal. Desqualifica a defesa do Estado para justificar as injustiças e a desigualdade social. Faz referência a um passado idealizado de prosperidade para associar à crise atual os avanços dos direitos das mulheres, negros e LGBTQIA+. Utiliza o discurso de violência para surfar nos algoritmos e repercutir nas redes sociais.
Enquanto as bases da proliferação da direita neofascista não forem modificadas, figuras como Marçal serão cada vez mais comuns no Brasil e no mundo.
O deslocamento da esquerda para o centro reforça a associação com o “sistema” e deixa a pista aberta para a extrema-direita aproveitar a insatisfação crescente com a democracia liberal e com o neoliberalismo.
A derrota da extrema-direita passa, necessariamente, pelo combate aberto ao neoliberalismo, por uma política de mudanças efetivas dos governos de esquerda para atender as demandas das maiorias, pela construção de uma nova democracia com o resgate do princípio da soberania popular e pela disputa frontal de ideias, valores e projetos de sociedade.
(*) Igor Felippe Santos é jornalista e analista político com atuação nos movimentos populares.