Em termos de contexto, desde o príncipio dos anos 2000 (ou seja, ao final da era unipolar estadunidense), existe no sistema internacional um clamor cada vez maior da parte de diversos países por uma política global mais inclusiva e menos centrada no Ocidente.
É, portanto, como resultado dessa tendência que o BRICS foi formado em 2009, por exemplo, grupo esse que persegue o objetivo comum de resistir a um mundo unipolar dominado pelos Estados Unidos e seus parceiros ocidentais. O BRICS, em outras palavras, busca a consolidação de um sistema internacional multipolar mais democrático e representativo da importância adquirida ao longo dos últimos anos pelos países emergentes.
Tal discurso, vale lembrar, já estava presente no discurso político brasileiro bem antes da formação do BRICS. A título de exemplo, ao visitar a Rússia no ano de 2002, o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso afirmou que ambos os países se encontravam de acordo com a defesa de uma ordem mundial multipolar, baseada na igualdade entre os Estados e no reconhecimento da importância das Nações Unidas.
Declarações de mesmo teor também puderam ser encontradas em discursos do alto escalão do governo brasileiro durante a era Lula (2003–2010), em que a diplomacia no Itamaraty se aproximou bastante de regiões como a África, o Oriente Médio e a Ásia. Seja como for, como a questão da “multipolaridade” nas relações internacionais foi encarada pela elite política no Brasil?
A príncipio, para responder a essa pergunta é preciso analisar qual a posição do país no sistema como um todo. O Brasil, se olharmos de perto, não é globalmente reconhecido como uma “grande potência”, no sentido de ser um Estado cujo poderio econômico, político e militar lhe permita exercer influência sobre a diplomacia mundial.
Por outro lado, o Brasil é certamente uma potência regional, cujas capacidades populacionais e econômicas o tornam evidentemente uma liderança quase que natural na América Latina.
Apesar disso, em termos sistêmicos o Brasil não detém responsabilidades especiais na gestão de assuntos sistêmicos de segurança, como é o caso dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Além disso, o Brasil não foi capaz de equiparar o seu tamanho territorial com um poder militar ou econômico equivalente, o que pode ser ilustrado pelo fato de, mesmo representando o quinto maior país do mundo, ser responsável por apenas 2% (aproximadamente) do PIB global. Se olharmos para a questão militar, por sua vez, o fato de o Brasil ser desprovido de armas nucleares diminui bastante sua capacidade dissuasória no sistema.
Logo, embora o Brasil e outras grandes potências globais, como Rússia e China, tenham o mesmo objetivo de se opor a uma ordem mundial dominada pelos Estados Unidos, suas visões sobre como lidar com a construção de um mundo multipolar diferem em certos aspectos.
Os representantes do Brasil, em particular e especialmente na segunda década dos anos 2000, manifestaram em diversos discursos a necessidade de defesa de uma “ordem internacional multipolar” mais democrática e justa, baseada na primazia do direito internacional e no reconhecimento das demandas sociais e políticas do chamado Sul Global.
Ao mesmo tempo, na posição de ex-colônia de uma potência europeia (nesse caso, Portugal), o Brasil tradicionalmente pensa a multipolaridade como um processo de “descolonização” das relações internacionais, ou seja, diminuindo a influência dos “países do Norte” sobre os processos de tomada de decisão global. Para isso, o Brasil não pretente agir sozinho como um dos possíveis polos de um mundo multipolar. Pelo contrário, a intenção da diplomacia brasileira é de coordenar esforços com os demais países da América do Sul e América Latina, de modo que todos possam melhorar sua posição no sistema.
Nesse contexto, apesar de representar quase uma “hegemonia regional”, por conta de seu potencial territorial, econômico e mesmo populacional, o Brasil procura exercer uma liderança internacional que envolva todas as nações em seu entorno.
Não à toa, entre os objetivos permanentes da política externa brasileira está o fortalecimento das relações do Brasil com os países da América Latina, forjando assim uma sólida aliança econômica, política, social e cultural.
Na prática, a liderança do Brasil para a consecução desses objetivos ficou demonstrada por sua participação essencial nos processos regionais de institucionalização e integração econômica testemunhados no continente a partir da década de 1990.
Como exemplo temos o Mercosul, fundado em 1991 por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Podemos citar também a Unasul, formada em 2004 com o objetivo de atuar como uma organização regional intergovernamental que pretendia diminuir a influência dos Estados Unidos sobre os países da região.
Dito isso, a compreensão do Brasil sobre o conceito de multipolaridade detém estreita relação com uma coordenação de esforços políticos entre seus vizinhos continentais, mais do que propriamente com uma empreitada isolada por parte de sua diplomacia.
Trata-se, portanto, de fazer com que as nações sul-americanas superem seu estigma histórico de dominação por parte do Ocidente, a fim de erguerem a voz num mundo em que finalmente possam participar de forma ativa e altiva dos processos decisórios globais.
Dessa forma, ainda que não faça parte do clube das grandes potências, o Brasil tem um importante papel a desempenhar para o estabelecimento da “multipolaridade” no século XXI.
Em 2024 acompanharemos de perto esse processo, seja na reunião do BRICS em Kazan (na Rússia) ou na reunião do G20 em solo brasileiro. As expectativas não poderiam ser melhores!