Marcado para esta quinta-feira (4), o leilão do 5G superou a expectativa do setor com a entrada de 15 empresas. O certame é considerado um marco para a conectividade do Brasil, mas a chegada da tecnologia também virou símbolo da disputa geopolítica, na avaliação de Leonardo Euler de Morais, presidente da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), que encerra o mandato na data do leilão.
“Embora a temática da segurança cibernética preceda o IMT 2020 [padrão internacional para a quinta internet móvel], o 5G acabou simbolizando essa discussão. O nível de conectividade aumenta tanto que essa questão torna-se mais crítica”, afirma Euler.
A construção política do leilão foi marcada pela ofensiva dos Estados Unidos à chinesa Huawei, que fornece equipamentos para as operadoras de telecomunicação. O governo de Donald Trump influenciou parceiros comerciais para que não permitissem a construção de redes 5G com aparelhos da empresa, alegando roubo de propriedade industrial e espionagem. O sucessor Joe Biden mantém a mesma política.
A tecnologia da Huawei, no entanto, já está presente em redes no Brasil. A troca atrasaria o leilão e oneraria as operadoras. A alternativa apresentada pelo ministro Fábio Faria (Comunicações) foi a construção de uma rede 5G privativa do governo, na qual a empresa não deve participar.
De caráter não arrecadatório para a União, o leilão venderá as licenças das faixas de frequência de 700 MHz (megahertz), 2,3 GHz, 3,5 GHz e 26 GHz por R$ 45,7 bilhões, a serem pagos em compromisso de investimento pelas operadoras. Um dos compromissos inclui a construção da rede governamental.
Euler reconhece que o 5G chega antes às regiões com atratividade econômica, como grandes metrópoles, mas diz que o leilão foi “completamente desenhado para fazer inclusão digital”, com implantação de 4G em 31 mil km de rodovias hoje descobertas e conectividade em escolas.
Caberá à Anatel fiscalizar os investimentos das operadoras nas próximas décadas.
“Estamos cobrando menos e dizendo que existe obrigação de investimento, e tem que dar garantia financeira para consecução desses objetivos”, disse.
O 5G costuma estar associado a carros autônomos e outras aplicações ainda distantes da realidade. O que de prático é vislumbrado no curto prazo? O 5G vai remodelar a sociedade e os meios produtivos. Trata-se de uma plataforma tecnológica que potencializa outras tecnologias, como inteligência artificial e robótica. Não se trata apenas de aumento de velocidade, como ocorreu na transição da terceira para a quarta geração de internet. Envolve objetos interconectados no agronegócio, por exemplo, que representa 25% do PIB, e aplicações mais futurísticas mesmo, como cirurgias remotas.
O desafio no fim da década de 1990 era conectar os domicílios, depois veio o ciclo de conectar as pessoas, e agora vem a terceira fase, que é conectar as coisas. Mas vamos colocar na expectativa certa: o 5G está em sua primeira infância, ainda teremos um tempo até as aplicações surgirem. Na transição para o 4G, quem poderia pensar em aplicações como Uber ou iFood? Máquina a vapor, eletricidade e internet promoveram mudanças transversais a todas as cadeias de valor. Talvez o 5G se insira nesse conceito.
Um dos compromissos das operadoras é o de cobrir com 4G áreas hoje não atendidas, o que é bem-vindo em um cenário de desigualdade. Mas diante da evolução da tecnologia, essas áreas não ficarão rapidamente atrasadas em relação aos locais que recebem 5G? Por isso que o edital tem um viés não arrecadatório. Temos quatro editais em um só, são quatro faixas de radiofrequência inseridas no edital.
As faixas de 700 MHz e de 2,3 GHZ só têm ecossistema para equipamentos 4G. Aí temos a faixa de 3,5 GHz, a principal porta de entrada do 5G, e a de 26 GHz, cuja condição de propagação é muito restrita e os modelos ainda são exploratórios.
Destaco que, de 2001 para cá, o Fust arrecadou R$ 25 bilhões em termos nominais. Todo esse valor foi usado para fazer superávit ou para minimizar o déficit primário. Nos Estados Unidos, há um fundo com o mesmo nome e com cobrança praticamente igual. Sabe quanto utilizaram em 2018 e 2019 para levar infraestrutura de banda larga e incentivar a demanda nas áreas desprovidas de atratividade econômica? US$ 8,5 bilhões e US$ 9 bilhões. Essa foi a razão de a Anatel enviar anteprojeto de lei para revisão do Fust, que foi aprovado. Espero que seja destravado daqui para a frente e usado no setor.
Esse entrave do Fust é antigo. É antigo. Na ausência do Fust, a gente vai fazer o maior edital de licitação da história da agência. O custo de oportunidade do bloco que tem na faixa de 700 MHz é de R$ 2,8 bilhões. Em vez de cobrar esse valor, cobramos R$ 160 milhões. Com essa diferença vamos cobrir com 4G mais de 1.000 trechos de rodovias federais, totalizando 31 mil km, pensando no escoamento da produção agrícola, industrial, nas rotas de integração e nas áreas rurais às margens das rodovias. Na faixa de 2,3 GHz, teremos várias obrigações para vilas e povoados que não têm infraestrutura.
Pode explicar essa divisão? O Brasil tem 22 mil localidades, segundo o IBGE, e elas se dividem em distrito-sede (5.570) e não-sede (16 mil), que são vilas, aglomerados e povoados. Desses 16 mil, 10 mil não têm cobertura de celular. Vamos cobrir mais de 9.800 com obrigações estabelecidas. Estamos cobrando menos e dizendo que existe obrigação de investimento, e tem que dar garantia financeira para consecução desses objetivos.
E o 5G, na faixa de 3,5 GHz, também exigirá obrigação. Primeiro nas capitais, onde tem mais gente, e depois nos locais com mais de 500 mil pessoas, depois 200 mil, até cidades e municípios com menos de 30 mil.
Evidentemente, vai chegar antes nos grandes centros urbanos. Dos distritos-sede, cerca de 1.000 não têm infra de transporte de dados de alta capacidade (comunicações de backhaul). O edital prevê obrigações para chegar com backhaul a 600 desses municípios.
Estamos fazendo leilão com R$ 50 bilhões em valor de outorga que não serão pagos em dinheiro, serão R$ 47 bilhões pagos em compromisso de investimento. É o maior leilão da América Latina e acredito que esteja entre os três maiores do planeta, por causa da quantidade de recursos espectrais.
Caso as operadoras não cumpram as obrigações, quem fiscaliza é a Anatel. Só que as empresas conseguem protelar processos administrativos, como é o caso de uma faixa no edital de 3G que até hoje não ativaram. Não é um risco grande? Esse caso tem uma particularidade, elas não encontraram equipamentos para cumprir com as obrigações. Aí decidimos que teriam que cobrir com outras tecnologias ou outras faixas de radiofrequência, e estão assim o fazendo. O conselho diretor já decidiu pela retomada da faixa. Mas não foi isso que aconteceu em outras faixas. Na minha gestão, o que tentei fazer foi converter o contencioso em investimento produtivo. Assinamos no ano passado os dois primeiros TACs da história da agência. O primeiro foi com a TIM, um valor de referência de cerca de cerca de R$ 650 milhões, com compromissos de investimento adicional. Ela teve que levar para 350 municípios –do Norte, Nordeste e norte de Minas Gerais– 4G onde só existia 3G.
O setor privado considera o leilão uma política pública de conectividade, mas o terceiro setor apresentou uma representação contrária ao edital na PGR. Entre os apontamentos, dizem que edital acirra desigualdade e que o 5G não vai chegar a áreas com pouca atratividade financeira. A gente está levando 5G a áreas remotas também. É fato que no primeiro ano a obrigação está relacionada às capitais. O 5G chega depois, mas vai chegar. Os operadores têm compromisso de investimento de 5G no edital da faixa 3,5 GHz. O 4G é na faixa de 700 MHz e 2,3 GHz. Respeitosamente, discordo completamente. Esse edital tem sido referenciado em todo o mundo.
Outra crítica diz respeito à celeridade em parte do rito. O ministro do TCU Aroldo Cedraz, revisor, solicitou 60 dias para análise, prazo reduzido para uma semana… Não vou entrar na dinâmica do TCU, mas dizer que o processo foi açodado em termos de análise, de maneira nenhuma. Enviamos dados ao TCU no fim de março, a decisão aconteceu em agosto. Até gostaria de elogiar os técnicos da agência, eles são referência na UIT [União Internacional de Telecomunicações] em termos de precificação de espectro. Entendo que muitas vezes cabe ao terceiro setor fazer as críticas, é legítimo e o papel deles, mas dizer que o edital não está completamente desenhado para fazer inclusão digital [não é certo].
Aliás, o edital conversa com cidadania, com retomada econômica, com infraestrutura, na medida que tem compromissos relacionados a estradas —com prioridades para BRs 163, 364, 242, 135, 101 e 116— e com educação. Todos os recursos que serão decorrentes da faixa de 26 GHz vão para conectividade das escolas. Fizemos acordo com BID e Fundação Lemann para ajudar o MEC a apresentar as escolas.
Cabe ao MEC definir as prioridades a partir de agora? Qual a perspectiva de conectar todas as escolas públicas? O MEC tem um prazo para apresentar isso para a Anatel. A gente está abrindo uma janela de recursos muito expressiva, vamos colocar todo esse arsenal de informação e estudo à serviço do MEC. A partir do momento que ele estabelece as escolas, cabe a um grupo responsável implementar isso.
Muitos que são considerados conectados à internet nas classes mais pobres têm acesso restrito a redes sociais, como Facebook e WhatsApp, porque as operadoras liberam esses aplicativos em planos pré-pagos. Como avalia esse modelo? Precisamos discutir no âmbito da reforma tributária os impostos sobre o setor de telecomunicações. Não dá para falar sobre uma economia baseada em dados em que se tributa esse serviço tal qual se tributa bens deméritos, como tabaco e bebida alcoólica. A carga tributária do Brasil, sem considerar fundos setoriais, é de aproximadamente 43% no setor de telecomunicações. No mundo, a média é de 14%. O Brasil é um completo outliner em termos de tributação. É preciso pensar se a carga tributária sobre o setor reflete a essencialidade do serviço.
O ministro Fábio Faria diz que o processo do leilão envolveu muita política, mas foi geopolítica. Qual o seu balanço final? Ninguém pode discordar que segurança cibernética, assim como proteção de dados pessoais, é algo que deve compor a agenda prioritária de um estado soberano. Embora a temática da segurança cibernética preceda o IMT 2020 [padrão internacional para a quinta internet móvel], o 5G acabou simbolizando essa discussão.
O nível de conectividade aumenta tanto que essa questão torna-se mais crítica. Agora, essa discussão perpassa as vertentes geopolítica, aí entra Itamaraty, econômica e técnica, que é onde entra a Anatel. Dentro dessa esfera de atuação, focamos em normas técnicas de equipamentos, homologação e regras de segurança cibernética. Se olha para o todo, não apenas ao edital.
A construção da rede privativa do governo será feita pelas operadoras, mas elas poderão operar a rede depois ou deve ficar com a Telebrás? Essa questão deverá ser definida pelo GSI [Gabinete de Segurança Institucional].
Empresas americanas têm defendido o conceito “open ran” [sistemas de hardware e software abertos a diferentes empresas], que também é uma forma de participarem do mercado. Qual sua opinião sobre esse modelo? Houve uma concentração de mercado muito grande. Tenho uma análise, que é o voto condutor do nosso regulamento de segurança cibernética aplicado às redes de telecomunicações, em que mostro como saímos de um conjunto de 12 vendedores para praticamente três: um finalndês (Nokia), um sueco (Ericsson) e um chinês (Huawei). Isso naturalmente diminui a competição, o que se traduz em preço para as prestadoras que compram equipamentos e para os usuários finais.
O maior desafio do open ran é a interoperabilidade. Acho que o modelo vai se tornar uma realidade em alguns anos, mas não cabe ao regulador, é a tecnologia que vai definir. A Anatel tem que regular para não obstruir esse desenvolvimento.