Já era depois do pôr-do-sol quando cheguei ao teatro Pérola do Oriente para assistir ao show. O chão ainda estava molhado da chuva que caiu ao longo do dia, mas já não caía mais. No caminho do metrô até o teatro encontrei muitos brasileiros, todos indo ao mesmo lugar e com o mesmo objetivo: ver o único show de Gilberto Gil em sua turnê pela Ásia.
Moradores de diferentes cidades da China, algumas bem distantes de Xangai, viajaram para ver a apresentação deste grande músico brasileiro, e muito mais gente poderia ter ido à cidade caso não precisasse trabalhar cedo no dia seguinte.
A data do show, 7 de outubro, foi o último dia do feriado de sete dias em comemoração ao Dia da Pátria, celebrado anualmente em 1º de outubro. Muitos brasileiros na China pretendiam ficar em casa ou viajar para outro lugar, mas decidiram visitar Xangai por causa do show, o que nos mostra o potencial dos eventos culturais para atrair turistas.
A maior parte desses brasileiros viajou alguns dias antes do show e aproveitou para passear e fazer compras na cidade, além de rever amigos que há tempos não viam: além de reencontrar pessoas queridas de Xangai, também revi velhos amigos de outras cidades chinesas. O show criou uma oportunidade rara para congregar a comunidade brasileira na China.
Um fator que levou a isso é o fato de que há muito tempo uma estrela da música brasileira não vinha se apresentar por aqui, em parte por conta da pandemia da Covid-19, que dificultou a realização de turnês internacionais.
De qualquer forma, é uma pena constatar que o potencial das trocas culturais entre Brasil e China vem sendo subutilizado. Aproveitá-lo é imperativo para o avanço das relações Brasil-China, pois os povos dos dois países precisam se conhecer melhor para poder fortalecer a cooperação bilateral.
Outro fator, sem dúvida o mais importante, é o fato do artista em questão ser Gilberto Gil, que não é apenas uma estrela, mas uma lenda da música brasileira, um músico que se destaca entre gigantes. Ganhador de inúmeros prêmios internacionais e com quase 60 álbuns lançados ao longo de sua carreira, Gil planeja dizer adeus aos palcos no ano que vem.
Aos 80 anos de idade, o artista prefere apresentações mais simples e intimistas em teatros, e sua atual banda é formada por seus filhos Bem e José, e seus netos João e Flor. A apresentação em Xangai foi assim, num teatro não muito grande, que propicia maior proximidade e interação entre artista e público. O show começou com “Expresso 2222”, e em seguida vieram “Viramundo”, “Chiclete com Banana”, “Upa Neguinho”, “Ladeira da Preguiça”, “É Luxo Só”, “João Sabino” e “Garota de Ipanema”.
Sentado num banquinho com um violão nas mãos, Gil recordou diversos sucessos seus e de outros grandes nomes da MPB em uma apresentação acústica e melódica, durante a qual fez comentários sobre as canções e se esforçou para promover a carreira musical de sua neta Flor, que mostrou grande talento ao cantar “Moon River”. Essa primeira parte do show foi encerrada com “Tempo Rei”.
Depois disso, Gil recebeu uma guitarra e o show continuou, agora dominado por instrumentos elétricos. De pé, Gil emocionou o público com uma interpretação tocante de “Não Chores Mais”, e em seguida homenageou Gal Costa com “Esotérico”.
O show prosseguiu com “Sonho Molhado”, “Vamos Fugir”, “Back in Bahia”, “Andar com Fé” e “Palco”. A cada canção Gil mostrava seu talento natural de contagiar o público, movimentando-se pelo palco e interagindo cada vez mais com a plateia, que ficou de pé para dançar e cantar “Aquele Abraço”.
Após uma breve saída do palco, os músicos retornaram para tocar “A Novidade” e “Toda Menina Baiana”. Foram quase duas horas de show, com Gil em pé, gesticulando e até mesmo ensaiando uma dança, mostrando estar em forma apesar da idade.
Na memória de quem viu tudo aquilo ao vivo, sobraram recordações de uma noite inesquecível. Se Gilberto Gil não voltar a se apresentar na China, é certo que se despediu em grande estilo. Se voltar, muita gente estará disposta a viajar para vê-lo novamente.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há oito anos.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum