A China é, sem sobra de dúvida, uma das grandes potências do mundo contemporâneo. É um dos países que mais cresceram nas últimas décadas, com uma média de 10% ao ano, e se colocou no cenário global como uma possível rival dos Estados Unidos na ascensão do mundo multipolar.
Mas o país tem um complexo sistema, que se divide entre o socialismo, implantado pelo Partido Comunista Chinês (PCC), e o capitalismo. Essa combinação traz a seguinte dúvida: afinal, a China é um país socialista ou capitalista?
Para responder a essa questão, as jornalistas Melina Saad e Thaiana de Oliveira, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, entrevistaram Elias Khalil Jabour, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do best-seller “China: o socialismo do século XXI”, junto com o coautor Alberto Gabriele.
O livro é fruto de trabalhos teóricos e estatísticos dos autores, e analisa a China como a locomotiva do sistema econômico global que o país se tornou, além de fazer uma reflexão sobre o que é o socialismo chinês. Ele também aborda quais são as perspectivas para a relação do Brasil com a China, a principal parceira comercial do país, na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Na entrevista, questionado sobre o que permitiu a ascensão da China como vista hoje, Jabour destaca que ela é fruto “da capacidade do país de gerir seus próprios interesses, dentro dos esquemas que eles mesmos [os líderes chineses] construíram”, especialmente no período pós-Segunda Guerra Mundial.
“Diferentemente do Japão e da Coreia do Sul, que são países que emergem a partir do pós-Segunda Guerra Mundial atrelados à área de influência dos EUA, a China fez uma revolução em 1949, que deu liberdade de manobra para gerir sua política externa de acordo com seus interesses”, explica Jabour.
Ele acrescenta que, aliado a essa revolução, “a China construiu uma boa base material nos últimos 40 anos, que garantiu ao país mais soberania diante do mundo”.
“Ela [a China] se transformou na oficina do mundo, no maior credor líquido do mundo. A China, sozinha, empresta para os países em desenvolvimento mais do que o FMI e o Banco Mundial juntos. E hoje a China é a maior provedora de bens públicos do mundo, ela instala milhares de ferrovias mundo afora, rodovias.”
Segundo Jabour, esse fomento financeiro e em infraestrutura contribui “para que a China seja bem-sucedida na questão política”.
Questionado se classifica a posição da política externa da China como neutra, Jabour é categórico ao afirmar que não.
“Não tem neutralidade na política. A China busca os interesses dela, assim como nós deveríamos buscar os nossos interesses e os americanos buscam os deles. Cabe a nós, aqui no Brasil, observar essa tendência da China, de como que ela opera sua política externa, e buscar oportunidades para o Brasil dessa política externa que a China tem. E não são poucas as oportunidades abertas ao Brasil”.
Ele acrescenta que a China tem, de fato, uma tradição de não intromissão em assuntos externos de outro país, mas pondera que “isso não significa neutralidade”.
Jabour afirma que o interesse do Brasil pela China aumentou muito nos últimos anos, mas esse aumento ainda “é insuficiente para que seja construído um pensamento nacional brasileiro capaz de orientar a situação do Brasil com a China.”
“Boa parte dos estudos sobre a China é carregada por estereótipos, por preconceitos e por juízo de valor. E por isso, acabamos sendo levados a ter uma desinformação muito grande sobre a China, e perdemos oportunidades que a China pode oferecer.
Questionado sobre se a China é socialista ou capitalista, Jabour destaca que, “do ponto de vista do marxismo, essa é uma falsa polêmica”.
Ele diz que “a China tem uma miríade de modos de produção e relações sociais de produção e troca, que bailam entre si”, mas que “o que predomina no final das contas é a forma pública de propriedades”.
“A China tem hoje 96 conglomerados empresariais estatais no núcleo estratégico da sua economia, empresas do porte da Petrobras. É o setor público que entrega os efeitos de encadeamento que o setor privado se aproveita para poder existir. É o setor público que gera os ciclos de acumulação de economia. Além do mais, a China é o país onde os bilionários e ricos capitalistas não ocupam poder político”.
Jabour acrescenta que, por esses fatores, acredita que a China é uma formação econômica social orientada ao socialismo, mas um socialismo embrionário, “envolto em contradições de múltiplas ordens, que se combina com as contradições típicas do capitalismo.”
O especialista ressalta que o modelo implantado na China não é uma ameaça para nenhum outro Estado, e destaca que o país é o que tem a maior mobilidade social do mundo.
“É o país que mais cresce no mundo, consequentemente, quando se aumenta a renda do país, as possibilidades de mobilidade social são imensas. O Brasil é o extremo oposto, onde não tem dinheiro circulando, tem um conflito distributivo, gera estagnação social, estratificação social. Isso dá margem para que o fascismo ganhe possibilidade de ação entre muitos membros da sociedade. Vide Brasil, EUA e Europa, onde a estratificação social corre a céu aberto.”
Sobre a China representar uma ameaça aos EUA, Jabour refuta a ideia, e diz que “quem tem que se sentir ameaçada é a China”.
“Não tem nenhum porta-avião chinês perto do golfo do México, a China não se constituiu uma ameaça militar aos EUA, muito pelo contrário. Se observamos o mapa mundi e as bases militares americanas que existem pelo mundo, tem bases que cercam a China.”
Ele acrescenta que para a China o fardo de ser uma potência militar seria muito grande. “Tanto é que ela [a China] quer que o Brasil seja forte, que a Rússia seja forte, que a África se conforme como um polo a compor o mundo multipolar. Ou seja, a China não quer ter esse fardo de ser a ‘dona do mundo’, como os americanos querem”, destaca Jabour.
Segundo Jabour, a China está redesenhando a geopolítica global, na medida em que “entrega para o mundo hoje uma outra forma de globalização”.
“Uma globalização alternativa à globalização financeira da década de 1990, que é centrada na exportação de bens públicos, como estradas e ferrovias, que é a Nova Rota da Seda”, diz o especialista.
Ele afirma que “as pessoas não querem lição de democracia, elas querem dinheiro, desenvolvimento, infraestrutura, indústria”.
“E quem está oferecendo isso para o mundo hoje? A China. Por isso, é quase que natural essa tentativa de muitos países em fazer parte do BRICS, porque é uma alternativa real à dominação exercida pelo chamado Ocidente, essa meia dúzia de países que se reúnem de vez em quando no G7 e acham que o mundo pensa como se estivéssemos 50 anos atrás.”