Autor de quatro livros e mais de cinquenta artigos publicados, a nova publicação de Elias Khalil Jabbour traz explicações consistentes sobre os processos em curso na República Popular, e o surgimento de uma nova formação social — batizada de Nova Economia do Projetamento.
Corintiano e morador do bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, o pesquisador brasileiro já dedicou 25 anos de vida ao estudo sobre a China. Questionado sobre as “acusações” de que a China estaria “voltando ao socialismo”, Elias disse que o socialismo nunca saiu do país.
Seu novo livro, intitulado China: O Socialismo do Século XXI, será publicado pela editora Boitempo e está em pré-venda. O livro é uma parceria de Elias Jabbour com o economista italiano Alberto Gabriele, com quem Elias discute sobre o novo lançamento desde meados de 2015.
O lançamento oficial do novo livro será nesta segunda (22 de novembro), em uma live às 11 da manhã, com a presença da ex-presidenta, sr.ª Dilma Rousseff, do advogado, filósofo e professor universitário, sr. Silvio Almeida, e mediação de Tings Chak, pesquisadora do instituto Tricontinental. O evento será transmitido no canal do YouTube da Fundação Grabois e da editora Boitempo.
Já no dia 29 de novembro (segunda), será vez da noite de autógrafos, na Livraria Leonardo da Vinci, no centro do Rio de Janeiro, às 18:30.
Leia a íntegra da entrevista:
Agência Brasil China – Pelo seu trabalho, a gente consegue dar uma ideia ao mundo de como o brasileiro enxerga a China. Mas camarada, me conta: Quando você começou a pesquisar sobre China, e como você chegou aos resultados expostos no livro?
Elias Jabbour – Olha, eu já estudo China há 25 anos. Quando eu conto 25 anos é a partir do momento que foi publicado um artigo meu nos anais do encontro de Iniciação científica em pesquisa em Geografia humana pela USP em 1996. Então, de lá para cá já, escrevi 4 livros, mais de 50 artigos acadêmicos sobre a China. Enfim, uma longa históra intelectual com a China e o socialismo.
Esse livro começa a ser pensado em 2015, 2016, quando comecei a ter contato mais permanente com esse economista que escreveu o livro comigo, Alberto Gabriele. Estávamos escrevendo igual e pensando as mesmas coisas, só que de lugares diferentes e sem desconhecer, até o dia que eu me deparei com o texto dele. Aquilo me encantou, comecei a ter contato com ele, nos aproximamos muito como amigos, até que eu disse: “vamos nos juntar aí, para escrever um livro sobre China e sobre o Socialismo juntos” Vamos, né? A partir daí, passamos dois anos discutindo a pauta do livro, quais os capítulos, e essa coisa toda que você sabe. Até que cheguei em 2019. Peguei uma licença-prêmio na universidade e fiquei 3 meses em Roma, onde ele mora, escrevendo esse livro.
Na verdade, [o livro] é uma tentativa de repensar o socialismo a partir de um balanço do que foi capitalismo e o socialismo no século 20, a partir de uma ressignificação de alguns conceitos do marxismo, como a lei do valor, um modo de produção e formação no social. E com isso observar a experiência chinesa à luz de todas essa ressignificação que nós fizemos. Tanto é que a tendência é que esse livro caia como uma bomba no debate. Ou seja, é capaz que esse livro seja muito mais atacado do que elogiado. Inclusive por que nós meio que viramos do avesso com essa história toda, né?
Por exemplo: Na introdução do livro, colocamos muito claro isso. Tínhamos e temos clareza do calor do debate que foi provocado porque desconstruímos uma visão de 3 ou 4 gerações de intelectuais comunistas ocidentais, que tem um marxismo, o socialismo, quase como um mito. Bom, a gente diz que não. As coisas não são assim.
O [historiador e filósofo italiano, Domenico] Losurdo, que escreveu o prefácio de um dos seus livros, chamaria esse pessoal de “apologistas do evangelho de São Marcos”.
Elias – Exatamente isso. Então a gente tem muita clareza, e a ideia nossa foi construir uma teoria do socialismo, nossa, que fosse capaz de dar conta de explicar a complexidade daquele processo, que é um processo de orientação socialista.
Aproveitando o gancho: hoje está em voga, por conta dessas regulamentações do Estado chinês, “acusar” a China de “estar voltando ao socialismo”, como propunha um artigo da BBC. A minha pergunta é: O socialismo, em algum momento, deixou de estar na China?
Elias – Não, eu acho que não. Enquanto você tem um Partido Comunista no poder, um sistema político de democracia não-liberal, ou seja, de uma democracia representativa e de base, que vai ganhando força ao longo do tempo, onde os comitês de bairro, comitês de vila, etc, onde você tem a propriedade pública como dominante no país, não pode dizer que o socialismo deixou de existir. O que existe hoje na China, que para eles [da BBC] é a “volta do socialismo”, é uma reconfiguração dos esquemas de propriedades no país, tendo em vista as contradições que o país acumulou em 40 anos devido ao desenvolvimento econômico. E não são pequenas contradições. Então existem mudanças institucionais que vão sendo necessárias, para fins de enfrentar essas contradições.
Vou te dar um exemplo: Eu não sou contra a propriedade privada, eu só acho que ela tem que ser substituída quando ela deixa de ter um papel histórico. Então a propriedade privada deixou de ter sentido histórico em alguns setores da economia chinesa. Logo, ela vai ter que ser substituída por outras formas históricas de propriedade. E onde que a propriedade privada chinesa tá mostrando deficiência? No setor imobiliário. Então você vai ter que estatizar esse setor, que é o que está acontecendo agora com a quebra da Evergrande. Então, o que está acontecendo na China hoje não é a “volta ao socialismo”. Evidentemente existe uma virada cultural e ideológica que se aprofunda com as ameaças que os americanos fazem, mas também existe uma reconfiguração da base material do país com vistas a uma mudança de paradigma no processo de acumulação, tendo em vista essas contradições acumuladas em 40 anos. Evidente que esse caminho que os chineses acabam tendo que fazer agora é um caminho mais “socializante” do que o caminho anterior. Mas isso não quer dizer que o socialismo tenha deixado de existir na China. Muito pelo contrário: existe desde 1949.
Sobre as “mudanças institucionais” que estão sempre presentes na sua obra: De que forma você consegue perceber essas mudanças acarretando transformações nessa questão da soberania monetária? Sendo mais direto, você acha que ocorre alguma chance da China voltar a abrir suas contas de capital?
Elias – Na China é o seguinte: não é por ela ser um país socialista que ela não tem burguesia, não tem luta de classes, não. Tudo que tem em um país capitalista, a China tem. Então existem frações do Partido Comunista da burguesia nacional chinesa que estavam pressionando o governo para abrir conta de capitais. E conseguiu, resultando naquela desgraça que veio em 2015. Então essa desgraça que deu em 2015, vamos dizer assim, “ajudou” o presidente Xi Jinping, a dar corda para se enforcarem, né. Isso deu força ao Xi Jinping para criar leis e regulamentos para sinalizar que: “olha, vamos parar com isso aqui”, e enfrentar esses caras politicamente. Isso que as pessoas não percebem. Os bilionários que Xi Jinping tem enfrentado são justamente esses bilionários que são favoráveis à abertura da conta de capitais na China. E nós sabemos que a abertura da conta de capitais pode significar o fim do socialismo na China. Então eu não vejo esse perigo da abertura de conta de capitais no curto prazo.
Mas também não abro mão de que venha a acontecer, de uma forma totalmente diferente do que a gente imagina. Por exemplo: Wall Street está grudado com a China. A China tem inúmeros ativos financeiros em Wall Street. Então quando chegar o dia em que a China vai abrir sua conta de capitais, ela vai ter grandes parcelas de Wall Street sob seu controle. Olha a dialética disso. A gente precisa estar preparado para essa coisa de observar o conceito se manifestando no movimento real o tempo inteiro e não olhar a coisa como algo ruim a priori. Pode ser ruim hoje, mas amanhã pode ser uma necessidade da internacionalização da moeda chinesa. Goste ou não, vai chegar esse momento.
Você traz de volta para o centro do debate o Ignácio Rangel. Qual a importância dele para entender a China?
Elias – Ele é a minha principal inspiração intelectual. E é um autor desconhecido. Ele é contemporâneo do Roberto Campos, Celso Furtado, e perde o debate para os dois. Rangel é um marxista, só que não um marxista do estilo do Caio Prado, Nelson Wernek. Ele é um marxista “rangeliano”. Ele “é ele”, né?
Um brasileiro?
Elias – É exatamente isso. É um marxista brasileiro. E para mim foi o maior pensador brasileiro do século 20, e talvez o maior economista do mundo no tempo dele. É fundamental Rangel para entender o Brasil hoje. Então quando eu falo para você, por exemplo, “tem que montar consórcio público-privado para poder enfrentar essas infraestruturas urbanas, também construir as estruturas do capitalismo brasileiro a partir do Estado e construir o setor privado brasileiro”, para mim é o Rangel que está falando na minha cabeça. É o raciocínio dialético rangeliano na minha cabeça o tempo inteiro pensando dessa forma: “olha, planificar o nosso comércio exterior com a China, então nós temos que aproveitar essa possibilidade, que a China nos entrega, de planejar nossa economia a partir das tendências que eles criam”, ou seja: tudo isso é o Rangel, não o Elias.
O caso da China é interessante porque quando eu chego a 2008, 2009, percebo que o movimento que a China tava ensejando, ou seja, aquela reação massiva do Estado na economia chinesa, com 96 conglomerados empresariais estatais executando milhares de projetos simultaneamente, com 30 bancos de desenvolvimento criando moeda, estavam criando um paradigma para as ciências econômicas. Ou seja: existia um “novo surgindo”, que as teorias convencionais não estavam sendo capazes de explicar. Até porque as teorias são, em grande medida, produto de uma determinado tempo histórico. Elas descrevem uma certa fase do capitalismo, de um certo modo de produção. Elas não são estáticas. Então, como eu e você somos simpáticos ao Hegel, a gente sabe que teoria e história tem que estar grudadas, enquanto que para os economistas teoria e história são coisas separadas.
Então eu comecei a perceber que a China, em movimento que aquele desenvolvimento estava ensejando, estava demandando a construção de novos conceitos, categorias, que fossem capazes de nos possibilitar tomar um processo como um todo, e não como parte. Então o Rangel me ajudou quando eu li o “Elementos de economia do projetamento”, de 1959, ele fala: “olha, existe uma economia aí, na União Soviética, e no processo de reconstrução européia, que você ‘pega’ a lei do valor, restringe a ação da lei do valor, e ao fazer isso, você pode criar um Estado voltado a execução de grandes projetos.” O que é a China, a partir de 2008, se não uma economia guiada para grandes projetos? Uma economia, segundo Rangel, amplamente voltada à satisfação das necessidades das pessoas, ao invés de ‘curto-prazismo’ empresarial.
Isso pra mim tem muito do Rangel. Entender a China e o socialismo hoje, para deixar claro, eu não compreenderia se não fosse Ignácio Rangel. Para mim é uma figura fundamental para entender o Brasil, e hoje tem sido fundamental para que eu possa entender a China e entregar essa elaboração nova que, sem falsa modéstia, que ninguém está conseguindo.
No curso EAD ministrado por você e Paulo Gala, vocês comentam sobre um período que estudiosos chineses estiveram no Brasil para aprender “o que não fazer”. A China hoje está criando uma nova tendência desenvolvimento mundial. E o Brasil?
Elias – O Brasil está em um processo de regressão ao século XIX. É um case de estudo mundial de uma nação que caminha abertamente para sua autodestruição. Todo país que se nega a se desenvolver, e a planejar seu desenvolvimento, está fadado ao fracasso.
E qual é o fio condutor para a gente se encontrar com o futuro?
Elias – A política, né? Eu acho que nós temos que recuperar a capacidade de pensar politicamente as grandes questões do Brasil hoje. Acho que não existe nada fora da política. É uma resposta simples, mas isso tem mais profundidade do que se imagina. Eu, por exemplo, sou comunista como você, mas sou muito fã do Lula. Eu acho que o Lula encerra o universal no particular no Brasil. Ele aqui é a figura que encerra em si todas as tendências políticas, históricas, culturais e subjetivas que foram criadas por grandes estadistas, como Bonifácio, D. Pedro II, Getúlio. Eu gosto de Floriano, Getúlio, JK, Geisel e o próprio Lula, em 2002. É uma síntese com Zumbi dos Palmares. Pega as melhores armas que o Brasil já criou em todos os níveis, hoje é o Lula. Eu posso estar me iludindo, mas ele encarna o universal no particular.
Inclusive, Hegel fala sobre o “espírito comunitário”. Algo que me remete às falas de Lula ao povo brasileiro, sobre colocar a picanha no prato, etc.
Elias – Isso é muito profundo. É o espírito comunitário em Hegel, com certeza.
A pré-venda do livro ocorre nos sites da editora Boitempo e da livraria Leonardo da Vinci.