A pandemia, a crise econômica e a alta da inflação deixaram ainda mais visíveis um velho problema brasileiro: a fome. Cenas de pessoas buscando doações, alimentos rejeitados por supermercados e até lixo se tornaram comuns no país –e se repetem na cidade de São Paulo.
Pessoas que vivem nas ruas e famílias sem renda travam, dia a dia, uma batalha para não dormir de estômago vazio. No fim das contas, elas até comem; não por ação do poder público, mas pela solidariedade da população.
É o empreendedor da feira que troca a ajuda no desmonte da barraca por legumes e frutas da xepa. É a funcionária da limpeza urbana que separa, e doa, a comida boa que iria para o lixo. São os projetos, ONGs e associações civis que oferecem refeições a quem precisa.
Enquanto as ofertas de emprego formal se concentram no centro da capital paulista, bairros periféricos, como Parelheiros ou Jardim Ângela, têm 0,5 emprego para cada 10 habitantes em idade ativa, de acordo com o último Mapa da Desigualdade de São Paulo. Nesses locais, as pessoas se viram como podem.
Calçadas, até então dominadas por homens, passam a ser também o lar de mulheres e crianças. Para estimar a população que vive nas ruas, a prefeitura antecipou o censo, e espera divulgá-lo até meados de 2022. Os dados sobre moradores de rua devem corroborar uma situação já bem visível: o aumento do número de famílias.
São, em sua maioria, famílias chefiadas por mulheres que buscam comida para levar para casa. Aqui, essas pessoas contam suas rotinas para aplacar a fome.
“Moro aqui no Jardim Papai Noel [comunidade em Parelheiros] há um tempão. Ontem fui buscar o Bolsa Família e saquei só R$ 102. Não dá para fazer muita coisa, não. Então eu como na casa da minha filha e com ajuda das doações da Ellen [líder comunitária].
Tenho geladeira em casa, está velhinha. Essa gordurinha aqui eu peguei ontem no açougue e vou fazer hoje na lenha para comer. Eu não paguei, foi o açougue que me deu. Não tenho fogão a gás. Como vou comprar gás? Não tenho dinheiro nem para a comida.
Tenho uma filha e mais dois meninos que não moram aqui. Um deles vende bala no farol. Moramos eu e meu marido, mas não trabalhamos por causa de hérnias na coluna. Eu mal consigo andar.
Quando eu acho feijão ou arroz no lixo, eu trago para comer. Ontem encontrei mortadela mofada; raspei, fritei e comi. Tem coisa no lixo que tem até bicho. Um dia achei feijão, mas tinha até pedra, então tive que lavar e cozinhar de novo.
Hoje vou jantar a gordurinha. Amanhã é outro dia, e aí a gente corre atrás de novo.”
Maria Lúcia Monteiro, 59 (moradora do Jardim Papai Noel, come com doações e restos de lixo)
“Eu morava numa ocupação ali perto da avenida Celso Garcia [zona leste], mas houve uma reintegração de posse e tive que sair. Faz uma semana que eu estou na rua com meu marido e meu filho. Estamos procurando outra ocupação para viver.
Recebemos doações, e tem o núcleo São Martinho, do padre Júlio Lancellotti, onde a gente toma banho e almoça. Algumas pessoas ajudam doando mantimentos, que eu cozinho. Faço aqui no álcool, no nosso fogãozinho [latas de refrigerante, tijolos e uma grade].
O Ryan [filho de 5 anos] vai para a escola, mas ela fica lá perto de onde eu morava. Agora, preciso pedir a transferência dele para uma mais próxima, por aqui, para poder continuar.
Na ocupação que eu vivia eu tinha cama, televisão, fogão. Tinha até um botijão de gás que eu vendi para não perder na hora da reintegração. Como poderia carregar todas essas coisas?
Agora a rotina é assim: almoçamos cedo, no padre Júlio, tomamos banho e voltamos para baixo do viaduto atrás de doação. É assim que a gente vive, um cuidando e ajudando o outro.”
Ana Paula Santos, 33 (moradora de rua, come com doações)
“Eu moro aqui na rua do Juventus, na Mooca, mas sou de Diadema. Sou da rua. Quando me veem no semáforo pedindo comida, algumas pessoas ajudam, outras não. Algumas xingam, outras nem olham.
Eu não consegui sacar o auxílio emergencial porque perdi meu RG. Tentei tirar outro, mas havia uma queixa de desaparecimento que a minha mãe fez, então achei melhor não. Eu saí de casa porque dava muito trabalho para minha mãe. Problema com droga, sabe?
Fazem uns oito meses que eu estou na rua. Eu vim para cá na pandemia. E quando você está sem máscara, as pessoas ficam com mais medo de doar. Por causa de tocar, elas têm medo de ficar perto.
Tem dia que eu durmo com muita fome, fico sem comer. E aí eu vou procurar no lixo; se eu acho, eu como. Se não encontro nada, não.
Se eu pudesse escolher alguma coisa para o ano que vem, eu queria voltar a ter uma vida normal. Mas não dá mais, não. A rua vira um vício, depois que você começa a pedir, fica difícil sair.”
Tiago Bastos de Santana, 24 (morador de rua, come com dinheiro doado no farol)
“Moro numa kitnet que comprei nos anos 1980. Venho aqui [centro de SP] todo fim de feira para pegar comida. Ganho um auxílio do INSS, mas estou cuidando de um parente doente. Então pego o que sobra e desmonto bancas em troca de legumes, verduras e frutas.
Comprar comida a gente até compra, mas daquele jeito, a opção mais barata. O preço dos alimentos está muito alto. Eu deixo de comer coisas para comprar o gás. Se eu quero frango ou carne suína, porque a de boi não dá, eu procuro demais. Tenho que andar muito para conseguir um preço bom.
Esse limão que eu peguei aqui no chão, por exemplo, eu espremo, coloco na geladeira e uso para limpar minhas panelas de alumínio. A comida que eu ganho divido com meu parente.
Vamos ver até quando isso vai, porque o seu Bolsonaro não está preocupado com a população. Ele está é preocupado com a reeleição.”
Dona Teresa, 74 (moradora do centro, come com ajuda da xepa das feiras)
“Vivo numa ocupação na avenida do Estado. Venho aqui [no viaduto do Glicério] sempre à noite, para comer. Ninguém da minha família [filha, genro e netos] tem renda fixa.
Nós vendemos água, bala, pipoca e amendoim no farol. Dá para tirar uns trocadinhos, mas na pandemia ficou mais difícil; tem menos gente na rua, e mesmo agora, com as coisas reabrindo, as pessoas ainda têm medo de chegar perto.
Comida a gente até tem, mas de doação; as pessoas nos dão marmita ou cesta básica. Se eu fosse comprar seria difícil, porque o dinheirinho que entra é pouco. Não tenho auxílio do governo, tentei pedir mas exigia muitos documentos, eu não consegui.
Vamos levando a vida assim. Não tem como comprar carne, essas coisas. Antes da pandemia até estava bom, mas depois… Não está tendo venda nenhuma. A única renda vem de Deus.”
Sueli Mendes, 59 (moradora de ocupação, come com doações e vendas informais)
“Moro nessa barraca [num galpão próximo à Igreja Pentecostal Deus é Amor, no Cambuci] há uns quatro meses. Recebemos doação, ajuda, e todo mundo aqui da comunidade compra alguma coisa.
Por exemplo: ninguém doa tempero, então a gente compra. Hoje eu comprei cheiro-verde, coentro e batata, e ganhamos bacalhau dos meninos que nos ajudam. Todos os dias fazemos nossa comidinha, e todo mundo aqui da comunidade come.
Nós somos contra as pessoas que pegam marmitas de doação e saem vendendo. Daqui sai refeição para muitos –é pouco, mas dá para todo mundo! Mesmo quem não colabora pode comer.
Eu só tenho o auxílio emergencial do governo, mas agora falaram que vai acabar, né? A última parcelinha eu saquei no dia 9.
Tem dia que nós não temos o que comer, mas nos viramos. A gente vai atrás e consegue de novo! Eu coloco uma roupa que eu ganho de bazar ali, para vender, pego o dinheiro e compro comida de novo. Sou a cozinheira oficial da comunidade.”
Maria José Cardoso Pires, 45 (moradora de rua, cozinha para ela e para os amigos do entorno)
“Estamos morando aqui em frente à ocupação [perto do Carrefour do Cambuci] desde o incêndio, em outubro. Cinco barracos pegaram fogo, e os outros foram danificados com água quando os bombeiros chegaram. Está tudo interditado.
No dia do incêndio, minha filha adotiva, que eu cuido aqui na comunidade, tinha acabado de ganhar nenê. Então imagina ela com um recém-nascido nessa situação?
Nós recebemos bastante doação. Moro há 20 anos na ocupação e tenho Bolsa Família. Antes das casas pegarem fogo, eu conseguia me manter com o benefício e com cesta básica da igreja evangélica.
Agora, estamos nos alimentando assim: quando recebemos cesta básica, ou quando grupos chegam aqui com marmita e lanche. Estamos nessa luta.
Creuza Cardoso Souza, 55 (moradora de ocupação, come com doações)